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ESTREIA DESTA QUINTA

'Vermelho russo', mostra imersão de duas atrizes no teatro e na amizade

No fim do século 19, o russo Constantin Stanislavski (1863-1938) era um jovem ator cheio de curiosidade sobre o ofício. De seu mergulho na arte de representar resultou um dos mais populares métodos de interpretação de que se tem notícia—valioso legado de que bebem o teatro, o cinema e artes correlatas até hoje.


No fim dos anos 2000—precisamente, em 2008—as atrizes brasileiras Martha Nowill e Maria Manoella eram jovens imbuídas de entusiasmo por seu ofício. Cheias de disposição, elas atravessaram meio mundo até Moscou para uma imersão nas técnicas e artimanhas stanislavskianas de atuação. 

O resultado dessa empreitada também ficou para a posteridade. As vivências das moças na terra da vodka – onde passaram um mês estudando na Academia Russa de Arte Teatral – estão documentadas no longa Vermelho russo, que estreia hoje em Belo Horizonte. Dirigido por Charly Braun (Além da estrada), o filme é baseado nos relatos de Martha Nowill sobre a experiência, publicados em 2009 na revista Piauí. Trata-se de uma espécie de híbrido entre documentário e ficção, que descreve, com pitadas de humor, os encontros e desencontros entre Martha e Manoella durante a oficina. Amigas na vida real, as paulistanas revivem na tela a viagem que testou os laços entre elas, em episódios entremeados pela encenação da peça Tio Vânia, do dramaturgo Anton Tchekhov.



Diretor do making of de O cheiro do ralo (2007), de Heitor Dhalia, e Última parada 174 (2008), de Bruno Barreto, Braun volta a exercitar nesse seu segundo longa sua aptidão por narrativas fluidas. Suas lentes registram o roteiro – assinado por ele e Martha Nowill e premiado no Festival Rio 2016. Mas também permanecem livres para captar o real, sempre que ele se apresenta.




A cena mais repetida do longa é um bom exemplo de como isso acontece. O trecho do clássico russo escolhido pelas amigas para os ensaios com o professor Vladimir Poglazov é uma discussão entre as personagens Sônia – mulher feia que é sobrinha do protagonista, o Tio Vânia – e Helena, a belíssima esposa deste. Martha interpreta a primeira, enquanto Maria Manoella vive a segunda.

Como na trama de Tchekhov, a relação das atrizes é perpassada pelo desgaste na convivência, bem como por aspectos mais sutis. Martha não é feia e seu tipo de beleza certamente não escapa aos olhos de quem a vê na tela. Mas Maria Manoella é detentora de um determinado padrão ainda visto como “clássico”: é alta, magra, branca, de cabelos lisos. Por isso mesmo, num acordo tácito, acaba assumindo o papel de Helena. De forma natural, essas questões afloram tanto nos ensaios como em outros momentos em que as atrizes contracenam e não fogem à câmera atenta do diretor.

Stanislavski

O real encontra muitas outras brechas nas aulas do professor Poglazov. Ele mesmo constitui uma delas. “No início, queríamos simplesmente achar um curso do método Stanislavski na Rússia – o que é até um ‘clichezão’ por lá, tem muitos – ligar a câmera e deixar rolar. Mas percebemos que isso ia ficar um pouco chato, então fomos dirigindo as aulas. Daí achamos o professor e montamos a turma. O Vladmir é um ator, claro, e óbvio que não é ‘ele mesmo’ o tempo todo. Ninguém, na verdade, é quando está diante das câmeras. Mas o interessante é como no filme essas coisas se misturam. Às vezes o professor está ali, interpretando ‘o mestre’. Em outros momentos, se vê mesmo admirado pelas cenas do Tchekhov que estão se desenvolvendo ali, na frente dele”, comenta Charly Braun. O diretor também permitiu que o cenário de Moscou e o alojamento dos aprendizes de artes cênicas – que também funciona como um retiro de artistas – integrassem a amálgama documentário-ficção de seu trabalho.


Sem pedantismo, a produção passa ainda por uma reflexão sobre o ofício do ator. “Eu queria mesmo abordar isso, mas de uma maneira que não ficasse chata ou ‘muito papo cabeça’. Não é, afinal, um documentário sobre procedimentos de atuação. Queríamos que quem assistisse pudesse ter uma ideia desse trabalho misterioso, que ninguém entende direito. Que tem técnica, mas é menos identificável que nas outras artes, como música, por exemplo, porque se embaralha com a vida da pessoa de uma forma talvez única. E eu senti que nós cumprimos com esse objetivo. Essa confusão entre realidade e ficção acho que funcionou bem nesse sentido. Deixou a coisa leve, o que é potencializado pelas várias pitadas de comédia que o próprio diário já trazia, mas com camadas de densidade”, afirma Braun.Confira o trailer:

 


Três perguntas para...

Martha Nowill
Atriz e roteirista de Vermelho Russo

Você viveu essa experiência na Rússia três vezes: a primeira em 2008, quando decidiu fazer o curso de teatro; a segunda em 2009, ao publicar os relatos de suas vivências em Moscou na revista, e a terceira agora, atuando em Vermelho russo. Como foi esse processo?
Olha, viver tudo isso de novo pela terceira vez foi, antes de tudo, um grande exercício de desapego. No início, eu ficava muito apegada às histórias descritas no relato, achava tudo “muito importante” para ser descartado. Mas um filme não é um reality show, né? É um produto inspirado na vida real. Daí o Charly dizia: ‘Ah, Martha, podemos cortar esse detalhe numa boa, é uma merda! (risos). E era mesmo, não fazia a menor diferença para a história. Mas aquilo me doía, porque eu pensava assim: ‘P…, não é uma merda, é a minha vida!” (risos). Então eu tive que criar um distanciamento. Outra coisa que tivemos que fazer foi reescrever várias cenas do roteiro enquanto filmávamos, lá na Rússia. Porque, 10 anos depois que eu fiz o curso, o país mudou, então muitas coisas pontuadas no texto não faziam mais sentido. Em 2008, a Rússia para mim parecia um país de velhos, todos ainda muito abalados pelo contexto histórico que massacrou tanta gente. Quando retornei, achei que isso ainda estava presente, mas vi um rejuvenescimento das pessoas, uma geração que cresceu e quer se abrir. Então experimentei também um outro contato com a realidade.

O que é mais desafiador sobre filmar na Rússia?
Então, é a Rússia toda, né? (risos). Para começar tem o frio congelante, a língua. E, principalmente, os costumes do país. É uma coisa muito louca. A maneira como eles nos interpretam é muito diferente de como estamos acostumados a ser interpretados, no geral. O entendimento às vezes fica bem difícil. E já é uma coisa meio louca para nós por si só o fato de estar em uma capital em que as placas de trânsito são escritas em cirílico (alfabeto utilizado para a grafia da língua russa).

O filme faz uma sutil reflexão sobre o ofício do ator. Você também acabou se debruçando sobre isso durante as gravações?
Sim. O próprio fato de eu ter vivido essa experiência três vezes me deu a oportunidade de pensar sobre isso. O que é a profissão do ator senão essa repetição, viver uma mesma coisa várias vezes – tudo como se fosse a primeira.

 

 

*Vermelho russo está em cartaz no Cine Belas Artes, às 21h30