Reclusa como convinha às mulheres dos anos 1800 na então jovem República norte-americana, a poeta Emily Dickinson (1830-1885) não conviveu com mais que 20 pessoas. A grande maioria, membros de sua família. Também sabe-se que não pisou mais que dois lugares para além da propriedade erguida por seus avós maternos, situada na cidade de Amherst, Massachusetts, onde morou por toda a vida com os pais, irmãos e alguns poucos agregados.
A calmaria sugerida pelo contexto provinciano talvez leve aqueles que nunca ouviram falar da escritora a vislumbrar uma donzela afável, que se ocupava de cultivar as virtudes femininas exaltadas na época: tocar piano, bordar, cozinhar, dançar a polca. Habilidades que essa mulher peculiar dominava bem e punha em prática com prazer. Mas que não conseguiram detê-la dentro do padrão estabelecido às moças de sua geração.
Questionadora, perspicaz, ácida e, há quem arrisque, precursora do feminismo, Emily Dickinson teve sua biografia filmada pelo diretor britânico Terence Davies (Amor profundo, A essência da paixão). Protagonizado por Cynthia Nixon (Sex and the city), Além das palavras, em cartaz em Belo Horizonte, aventura-se a desenhar a trajetória e o perfil psicológico da autora, morta aos 55 anos vítima de doença renal crônica. É um respeitável desafio, a julgar pelo fato de que tudo o que se sabe sobre a vida de Emily vem das cartas que ela escrevia às poucas pessoas com quem correspondia.
Os mais de 1.8 mil poemas compostos por Dickinson – quase todos descobertos após sua morte já que, viva, ela publicou menos de 10 –, certamente deram a Davies outras pistas de sua personalidade. Os versos da autora eram inquietos, sem concessões à rima fácil, à regularidade e ao “açúcar” do Romantismo. Como bem descreve Augusto de Campos, tradutor de sua obra no Brasil: “Cruzam-se em sua poesia os traços de uma solidão-solitude, ora serena ora desesperada, e de uma visão abismal do universo e do ser humano. Micro e macrocosmo compactados em aforismos poéticos”.
Bucólico O estilo sóbrio e nada óbvio da poetisa moderna, ao que parece, ditaram ainda o tom do filme. Davies resistiu à tentação de criar uma narrativa emocional de época que glamoriza o século 19, ou constrói “uma heroína à frente do seu tempo” – conhecida fórmula aplicada a produções como Razão e sensibilidade (1995) ou Orgulho e preconceito (2006). Trata-se de um longa bucólico, que faz jus à bucólica dona do poema Não sou ninguém (Que triste – ser – Alguém!/ Que pública – a Fama –/ Dizer seu nome – como a Rã –/ Para as palmas da Lama!). O foco está nos conflitos internos da personagem, filha de um político abastado que, ainda na menina, recusou-se a declarar publicamente sua fé cristã no seminário em que estudava.
Nessa perspectiva, Cynthia Nixon foi, sem dúvida, uma escolha bastante acertada. Equilibrando força e delicadeza, ousadia e resignação, a atriz faz um belo desenho da inquietude refletida na poesia da escritora, traçando-a como uma espécie de mar revolto que se debate com os limites de seu tempo, mas não se atreveria a viver fora deles.
Sem clichês, a Emily de Cynthia transita entre a mulher que, em pleno século 19, no interior dos EUA, não temia apontar ao pai (Keith Carradine) e ao irmão (Duncan Duff) os privilégios que tinham por serem homens, ao mesmo tempo em que vivia para a família e sabia que nunca suportaria viver afastada dela. É a rebelde que se nega a se ajoelhar diante do pastor, em momento de oração familiar, mas, se inscrevia em concursos de bolos de bom grado.
Cynthia também é feliz na maneira como administra as paixões e sentimentos de Emily. Percorre, com maestria, a escala detalhada de nuances entre a moça lúcida, consciente da prisão que os casamentos da época significavam, e a pessoa que se apaixona por um pastor (Eric Loren) casado e chega nutrir um fio de ilusão de se relacionar com ele. Sutilmente, em cenas de incrível beleza, a atriz sugere ainda uma paixão pela cunhada Susan (Jodhi May), e pela descolada amiga Vryling (Catherine Bailey).
Três perguntas para...
Terence Davies
Diretor
O que despertou o desejo de filmar a vida de Emily Dickinson?
O que me fascinou foi principalmente sua “vida interior” extraordinariamente rica. A educação de Emily, o espectro de suas leituras são de tirar o fôlego. Fora ter escrito quase 1,8 mil poemas, ao mesmo tempo em que produziu três volumes de cartas, a extensa correspondência mantida com o pastor Lord, as “cartas ao mestre” (missivas que a escritora direcionava a um homem que chamava de “mestre”, sem comprovação de que chegaram a ser postadas), sua habilidade ao piano, o talento para confeitaria, sua dedicação às tarefas domésticas, tudo isso em constante dor, provocada pela doença renal. Era uma mulher extraordinária sob qualquer padrão.
Como você traçou a personalidade de Emily e selecionou os episódios da vida dela que seriam contados no filme?
Eu li seis biografias sobre Emily e isso foi suficiente para que eu tivesse uma ideia de tempo e lugar. Infelizmente, não consegui ler muitas das cartas que a escritora produziu ao longo da vida.
A atuação de Cynthia Nixon no longa é memorável. Quando você se deu conta de que ela era atriz para o papel?
Conheci Cynthia cerca de cinco anos atrás, por ocasião de um projeto que acabou não se concretizando. Desde então, ela ficou na minha cabeça. Cheguei a assistir a um único episódio de Sex and the city – com a TV muda. De qualquer forma, as reações dela, para mim, eram as mais verdadeiras e me levaram a intuir que ela seria perfeita para o papel.
A calmaria sugerida pelo contexto provinciano talvez leve aqueles que nunca ouviram falar da escritora a vislumbrar uma donzela afável, que se ocupava de cultivar as virtudes femininas exaltadas na época: tocar piano, bordar, cozinhar, dançar a polca. Habilidades que essa mulher peculiar dominava bem e punha em prática com prazer. Mas que não conseguiram detê-la dentro do padrão estabelecido às moças de sua geração.
Questionadora, perspicaz, ácida e, há quem arrisque, precursora do feminismo, Emily Dickinson teve sua biografia filmada pelo diretor britânico Terence Davies (Amor profundo, A essência da paixão). Protagonizado por Cynthia Nixon (Sex and the city), Além das palavras, em cartaz em Belo Horizonte, aventura-se a desenhar a trajetória e o perfil psicológico da autora, morta aos 55 anos vítima de doença renal crônica. É um respeitável desafio, a julgar pelo fato de que tudo o que se sabe sobre a vida de Emily vem das cartas que ela escrevia às poucas pessoas com quem correspondia.
Os mais de 1.8 mil poemas compostos por Dickinson – quase todos descobertos após sua morte já que, viva, ela publicou menos de 10 –, certamente deram a Davies outras pistas de sua personalidade. Os versos da autora eram inquietos, sem concessões à rima fácil, à regularidade e ao “açúcar” do Romantismo. Como bem descreve Augusto de Campos, tradutor de sua obra no Brasil: “Cruzam-se em sua poesia os traços de uma solidão-solitude, ora serena ora desesperada, e de uma visão abismal do universo e do ser humano. Micro e macrocosmo compactados em aforismos poéticos”.
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Nessa perspectiva, Cynthia Nixon foi, sem dúvida, uma escolha bastante acertada. Equilibrando força e delicadeza, ousadia e resignação, a atriz faz um belo desenho da inquietude refletida na poesia da escritora, traçando-a como uma espécie de mar revolto que se debate com os limites de seu tempo, mas não se atreveria a viver fora deles.
Sem clichês, a Emily de Cynthia transita entre a mulher que, em pleno século 19, no interior dos EUA, não temia apontar ao pai (Keith Carradine) e ao irmão (Duncan Duff) os privilégios que tinham por serem homens, ao mesmo tempo em que vivia para a família e sabia que nunca suportaria viver afastada dela. É a rebelde que se nega a se ajoelhar diante do pastor, em momento de oração familiar, mas, se inscrevia em concursos de bolos de bom grado.
Cynthia também é feliz na maneira como administra as paixões e sentimentos de Emily. Percorre, com maestria, a escala detalhada de nuances entre a moça lúcida, consciente da prisão que os casamentos da época significavam, e a pessoa que se apaixona por um pastor (Eric Loren) casado e chega nutrir um fio de ilusão de se relacionar com ele. Sutilmente, em cenas de incrível beleza, a atriz sugere ainda uma paixão pela cunhada Susan (Jodhi May), e pela descolada amiga Vryling (Catherine Bailey).
Três perguntas para...
Terence Davies
Diretor
O que despertou o desejo de filmar a vida de Emily Dickinson?
O que me fascinou foi principalmente sua “vida interior” extraordinariamente rica. A educação de Emily, o espectro de suas leituras são de tirar o fôlego. Fora ter escrito quase 1,8 mil poemas, ao mesmo tempo em que produziu três volumes de cartas, a extensa correspondência mantida com o pastor Lord, as “cartas ao mestre” (missivas que a escritora direcionava a um homem que chamava de “mestre”, sem comprovação de que chegaram a ser postadas), sua habilidade ao piano, o talento para confeitaria, sua dedicação às tarefas domésticas, tudo isso em constante dor, provocada pela doença renal. Era uma mulher extraordinária sob qualquer padrão.
Como você traçou a personalidade de Emily e selecionou os episódios da vida dela que seriam contados no filme?
Eu li seis biografias sobre Emily e isso foi suficiente para que eu tivesse uma ideia de tempo e lugar. Infelizmente, não consegui ler muitas das cartas que a escritora produziu ao longo da vida.
A atuação de Cynthia Nixon no longa é memorável. Quando você se deu conta de que ela era atriz para o papel?
Conheci Cynthia cerca de cinco anos atrás, por ocasião de um projeto que acabou não se concretizando. Desde então, ela ficou na minha cabeça. Cheguei a assistir a um único episódio de Sex and the city – com a TV muda. De qualquer forma, as reações dela, para mim, eram as mais verdadeiras e me levaram a intuir que ela seria perfeita para o papel.