Mineiro de Ituiutaba, João Batista de Andrade se mudou para São Paulo ainda jovem. Na década de 1960, enquanto os militares tomavam o poder no país, ele se envolvia com o movimento cinematográfico que emergia na capital paulista. Como diretor, suas primeiras produções tiveram como tema justamente os conflitos pela liberdade individual, tão gritantes à época. Agora, aos 77 anos, o cineasta e escritor se depara com um novo desafio ligado à sétima arte em um momento de tremenda inquietação política. Indicado à presidência da Ancine (Agência Nacional do Cinema), ele rechaça rótulos que o associem politicamente ao governo de Michel Temer e diz que tem seu foco no desenvolvimento do audiovisual brasileiro.
A militância na juventude e a postura crítica em seus filmes, como o premiado O homem que virou suco (1981) e O país dos tenentes (1987), conduziram Andrade à política. Em 2005, foi nomeado secretário estadual de Cultura de São Paulo pelo então governador Geraldo Alckmin (PSDB). Sete anos mais tarde, assumiu a presidência do Memorial da América Latina, permanecendo no cargo até o ano passado. Atualmente, Andrade já figura no quadro do governo federal, à frente da secretaria-executiva do Ministério da Cultura. Ele foi o indicado pelo ministro da Cultura, Roberto Freire, para assumir o comando da Ancine.
O cineasta mineiro vai substituir Manoel Rangel, que deixará o cargo em maio, após 12 anos e três mandatos como presidente da Agência. Para assumir, João Batista de Andrade ainda precisa ter sua indicação sancionada por Temer e passar por uma sabatina no Senado. Em tempos de desconfiança extrema a respeito das instituições governamentais e grande resistência dentro do próprio meio cinematográfico, onde muitos consideram o atual governo ilegítimo, ele terá um desafio extra, além de fomentar a tão diversa atividade audiovisual no país.
BUROCRATAS Ex-militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e ex-secretário do governo tucano em São Paulo, João Batista acredita que a política cultural está acima das disputas partidárias. “A cultura é uma questão de Estado, não é porque você gosta ou desgosta do governo que vai abandonar a política da cultura para os burocratas. Não podemos abrir mão. Tem que estar na nossa mão”, afirma.
Criada em 2001 com o objetivo de fomentar e regular a atividade audiovisual no país, a Ancine conta em 2017 com um orçamento anual de R$ 748 milhões, destinado ao Fundo Setorial do Audiovisual. Os recursos servem para fomentar filmes de longa e curta-metragem, produções televisivas e outras iniciativas audiovisuais nacionais. A quantia, que chegou a bater a marca de R$ 1 bilhão em 2014, serve para dar aporte às produções selecionadas via editais e outros programas públicos em todo o país.
Em 2016, o Brasil bateu o recorde de longas lançados em um único ano no circuito exibidor – estrearam 143 títulos, nove a mais que em 2015. No entanto, a centralização das produções ainda é um desafio para a Ancine. Os estados do Rio de Janeiro e São Paulo concentraram 109 dos 143 filmes. Atrás da dupla, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Paraná produziram seis cada um, enquanto apenas cinco saíram de Minas Gerais.
Diante desse cenário, João Batista de Andrade promete lutar por uma melhor distribuição do cinema nacional e elogia a produção de sua terra natal. “Uma coisa muito importante para mim é o processo de regionalização. Fui um dos primeiros a fazer cinema em São Paulo. Sou criador da Associação de Cineastas e do polo de cinema em São Paulo. Na época, era tudo centrado no Rio. Sempre apoiei os polos regionais e fiquei muito admirado com o progresso que tem sofrido o cinema em Minas. Sempre tive contato com o pessoal da minha geração, mas agora vejo muita gente nova, muita vontade de crescer, de fazer filmes. Prometemos mais ainda o desenvolvimento”, afirma.
Três perguntas para...
JOÃO BATISTA DE ANDRADE
Secretário-executivo do MinC e futuro presidente da Ancine
Qual é sua expectativa diante da possibilidade de assumir a presidência da Ancine num contexto político em que o governo federal é visto com desconfiança quando não considerado ilegítimo por boa parte dos cineastas brasileiros?
Pensei muito para aceitar o convite, muito mesmo, tanto para o ministério (MinC), quanto para a Ancine. Tinha muita dúvida para essas duas tarefas, exatamente por causa disso. Mas a política, o cinema e a leitura convivem juntos, nenhum atrapalha o outro, pelo contrário. O fato de estar na política nunca me fez parar de filmar, faz parte da minha vida. Roberto (Freire, Ministro da Cultura) é meu amigo há muito tempo, por isso tive que aceitar. Quanto a essas divisões, sinceramente não espero que o cinema tenha qualquer tipo de resistência em relação a mim. Fiz meus filmes em todo tipo de cenário e governo, nunca fui governista, fui militante do PCB, participei de outros movimentos, meus filmes sempre retratavam a ditadura de forma crítica. Meu perceber é que meu partido é o da cultura brasileira ou do cinema brasileiro. Sou uma pessoa extremamente aberta. Tenho filmes na lista dos principais críticos. Então não tenho nada para me preocupar. Para mim, o sagrado é o cinema brasileiro, que é minha paixão. Não se pode confundir a obra de alguém com a posição política dele, isso é um absurdo, uma radicalização ridícula, mesquinha. Custei muito a aceitar o convite (para a Ancine), mas a realidade é que, no ministério, fui indicado e tive uma repercussão boa, então ou eu volto a filmar ou assumo o cargo. É difícil escapar para quem, como eu, militou tanto e lutou tanto.
O Brasil tem hoje uma diversidade muito grande de realizações cinematográficas, que vão desde filmes de baixíssimo orçamento até blockbusters que custam milhões de reais e concorrem com Hollywood nas bilheterias nacionais. Como o senhor pensa em contemplar essa diversidade e as especificidades de cada um? Muitos cineastas reclamam da falta de apoio para produções menores diante de um suposto privilégio das produções de maior potencial de bilheteria.
A Ancine tem um espectro enorme, nunca teve tanta produção como agora, mais de 130 filmes por ano. Na (época da) Embrafilme eram 70, 80, no máximo. Tem a produção para a TV, tem um mercado muito grande, muita gente filmando. Para os novos realizadores tem um programa de TV pública, para exibir produções na TV universitária, que permite a muitos jovens começar a carreira, para depois buscar outros editais para filmes, curtas etc. Tem uma possibilidade enorme de acesso. Falta é batalhar mais para que o cinema tenha uma performance melhor no mercado. A distribuição é que tem concentrado demais em poucos filmes. Na distribuição podemos fortalecer novas distribuidoras médias, abrindo esse espectro para que novas distribuidoras se interessem por mais filmes, aumentando as chances de cada um. Não é querer que todos tenham sucesso, não é isso, mas que todos tenham espaço.
Outra questão importante neste momento é sobre a taxação dos serviços de streaming, como a Netflix. Como o senhor pensa em lidar com a tema?
É uma modernidade, estamos trabalhando com todas as consequências do audiovisual. Tudo que vai para cinema e TV (são várias janelas) tem que ter um tratamento para cada mercado. Para TV a cabo já temos a lei que abre espaço para o audiovisual brasileiro e agora tem o desafio do VoD (video on demand). Essa distribuição é custeada pelo próprio consumidor. O Brasil está junto do mundo inteiro, discutindo o que fazer, se regula ou não regula. O que sei é que se há um grupo explorando o mercado brasileiro de cinema, ele tem que contribuir com o audiovisual brasileiro. Sobre a regulamentação, essa é uma discussão do mundo inteiro, como fazer – as empresas estão fora do país, às vezes nem se sabe onde estão. É complicado regulamentar, é um desafio grande para todos nós. Tem um Conselho Superior de Cinema que dita as normas da política cinematográfica. A próxima reunião é dia 16 de maio e o tema principal será o VoD. Vamos discutir que comportamento o cinema brasileiro tem que ter e vamos ver se há ou se surge alguma certeza.