“Minha morte violenta me fez mártir. Mártir de uma insurreição que fracassou. Apenas eu perdi a cabeça. Talvez por ser o mais pobre. Talvez por ser o mais exaltado.”
Joaquim, longa de Marcelo Gomes que estreia nos cinemas nesta véspera do feriado da Inconfidência Mineira, começa pelo fim da história de Tiradentes, contada nas palavras do próprio mártir decapitado.
Essa introdução anuncia a espinha dorsal do filme – ele assume a perspectiva de Joaquim (Júlio Machado), um homem que tem mais perguntas do que respostas, e, paralelamente, desenha o cenário no qual os pensamentos revolucionários dominaram sua cabeça e o levaram a entrar de corpo inteiro numa batalha contra a Coroa que antes servira.
Distante da pompa comum às produções de época, Gomes retrata as circunstâncias das Minas do século 18, com ênfase na privação experimentada por “aqueles que viviam a face mais cruel do colonialismo”. O diretor aponta que “em torno de uma elite econômica que usufruía da riqueza proporcionada pelo ouro, havia uma legião de africanos, mestiços e índios em completa miséria”.
Gomes vê semelhanças entre essa disparidade e a situação atual das grandes capitais europeias, “bolsões de riqueza que atraem legiões de miseráveis”. E precisamente porque sua ambição era “construir um filme sobre um passado vivo”, o cineasta fez escolhas em Joaquim que assinalam as origens de muitas das “fraturas sociais” que seguem machucando o Brasil.
saiba mais
Cineasta Marcelo Gomes denuncia 'crise democrática brasileira'
'Joaquim', de Marcelo Gomes, estreia em Berlim; veja teaser
Com 'DNA mineiro', filme de Marcelo Gomes disputa o Urso de Ouro em Berlim
'Vida' tenta fugir do clichê, mas cai na mesmice do filme de alien
Vilão de 'Star wars' estrela 'Paterson', novo filme de Jim Jarmusch
SUBORNO A corrupção e as condições para o seu surgimento estão presentes no longa tanto no contexto amplo das relações da Coroa com sua colônia quanto no dia a dia do alferes Joaquim, ao desempenhar seu trabalho de caça a contrabandistas de ouro e presenciar a prática de suborno se tornar cada vez mais acintosa, assim como ao ver sua aspiração a uma promoção ser constantemente frustrada, enquanto muitos outros sobem na carreira por critérios outros que o mérito.
Para realizar o longa, Marcelo Gomes fez uma extensa pesquisa sobre seu personagem e o período histórico que lhe corresponde, mas não se furtou a imaginar livremente as relações interpessoais de Tiradentes, tanto no exercício de uma prática de
Rodado na região de Diamantina, Joaquim tem cenas de travessia de rios e montanhas para levar o garimpo cada vez mais longe. A decisão de filmar nessa área da Serra do Espinhaço responde à vontade do diretor de mostrar a “impenetrabilidade” da paisagem a que estavam sujeitos seus personagens.
Joaquim se vale também de momentos de quietude e silêncio, porque levar “a modorrência do século 18” para a tela era um objetivo do cineasta e uma de suas certezas na profissão é que, “para instigar a imaginação, um filme tem que ter silêncio”. Do “mestre Humberto Mauro” ateve-se à lição de que “o cinema não tem que explicar a história, tem que transformar a história em prática”.
O final de Joaquim é propositalmente abrupto e sugere que, a partir dali, Joaquim passará do pensamento à ação que o fez, literalmente, perder a cabeça. Marcelo Gomes não espera que, com isso, Joaquim catalise indignações na forma de um levante popular. Mas acredita que “o cinema é capaz de provocar revoltas e rebeliões individuais”. E talvez uma mudança no modo de se encararem determinados heróis.
MINEIROS NO ELENCO
O espectador de teatro mineiro reconhecerá em Joaquim diversos rostos frequentes nos palcos, sobretudo de integrantes do Grupo Galpão. Eduardo Moreira, Paulo André, Chico Pelúcio e Antonio Edson têm papéis no longa, assim como o português radicado em Belo Horizonte Martim Dinis (Madame Teatro).
EXERCÍCIO DE HUMILDADE
Há determinadas atrizes que hipnotizam a câmera, diz o diretor Marcelo Gomes. Quando viu o teste de Izabel Zuaa para a personagem Preta, ele achou que estava diante de uma dessas. Portuguesa radicada no Brasil desde 2010, vivendo no Rio de Janeiro, Izabel foi fazer o teste para o papel de “uma mulher africana escravizada e guerreira”.
O fato de a personagem ser guerreira foi o que a atraiu, por ser “diferente da perspectiva da escrava submissa a que estamos acostumados a ver” e sobretudo porque lhe interessava interpretar “uma mulher negra que fosse empoderada dentro das condições que ela tinha no século 18”.
Não que tenha sido fácil.
A atriz define como “um exercício de humildade” entrar na pele de uma personagem “que não é livre, que não tem liberdade sobre o próprio corpo”.
Essa é a condição de Preta, objeto do amor de Joaquim, mas a trajetória da personagem na trama sofre uma inflexão que faz o alferes não apenas olhá-la com outros olhos, como também admirar e invejar sua capacidade de contornar as condições que lhe foram impostas.
O percurso de Preta, associado ao da mulher de João, escravo do alferes, permite dizer que Joaquim é um filme feminista – mas sem fazer alarde disso.