“Assim como na antiga civilização romana, como em Sodoma e Gomorra, todas as vezes em que uma sociedade está em decadência, a principal característica é a falta de valores morais, a promiscuidade sexual, o desamor, as frustrações e os desencontros.” Essa mensagem aparece no plano inicial de Giselle (1982), longa dirigido por Victor de Mello. Se fica a dúvida sobre a pertinência da frase para o Brasil atual, é certo que ela diz muito sobre os filmes em destaque na 16ª edição da mostra Curta circuito, que será aberta hoje, explorando a pornochanchada, uma das faces mais populares do cinema brasileiro.
Carlo Mossy, de 71 anos, o homenageado especial, participou de cerca de 40 filmes produzidos no país nos últimos 50 anos. Quatro estarão em cartaz até 25 de abril, dia em que o ator e diretor vai comandar uma masterclass. Curtas inéditos dele estão na programação, que se estende às cidades de Araçuaí e Montes Claros.
Em Giselle, Mossy é o capataz Ângelo, que vive um triângulo amoroso com a filha do patrão e a madrasta dela. Hoje à noite, a atriz Monique Lafond, que também está no elenco, participa de bate-papo no Cine Humberto Mauro. Expoente da pornochanchada surgida na década de 1970, o filme aborda assuntos delicados como estupro e pedofilia, embora mescle os tons cômico e dramático a muitas cenas de sexo, incluindo orgias e relações homoafetivas.
“Todos os meus filmes têm um quê da condição humana. Giselle é um filme com muita crítica, embora esteja no meio do erotismo. Todos os personagens são bissexuais, foram desenvolvidos por mim, em parceria com o Vitor de Mello, pensando no Teorema, do Pasolini, que mostra um rapaz que chega numa família e destrói tudo. A Giselle enlouquece toda uma família através do sexo, uma família que já estava em ruína moral”, afirma o ator. A mostra vai exibir O sequestro e Essa gostosa brincadeira a dois, também estrelados por ele e dirigidos por Mello, além de Ódio, assinado apenas por Mossy.
PRESENTÃO O ator e diretor se orgulha justamente dos aspectos que tornaram a pornochanchada alvo de críticas e rótulos pejorativos. Para ele, o gênero sobrevive neste século 21, agora por meio da chamada comédia de situação, como é o caso de filmes como E aí, comeu?.
“É muito honroso estar em BH usufruindo desse presentão que é ser homenageado por filmes que julgo clássicos do cinema nacional, mesmo que a elite cinematográfica hermética e intelectualizada não lhes dê valor. Não faço parte dessa elite, sou um diretor dedicado ao popular. A cultura não existe apenas no que tange à literatura e à filosofia. Existe a cultura do bem-estar e da alegria, mas poucos cineastas sabem ofertá-la”, afirma Mossy.
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Sem deixar de lado o escracho e o bom humor, o amadurecimento trouxe outros temas para os filmes dele, como o envelhecimento. Garantindo estar “inteirão”, Mossy explica: “Hoje, me resguardo mais no lado setentão. Não deixei de ser sacana, mas pretendo botar um filete de intelectualidade, procurar o lado mais intimista e complexo do audiovisual, com mais ressonância. Um lado filosófico, mas que qualquer pessoa possa entender. Você pode ter certeza: não fugi à regra de agradar ao simples”.
Com nove minutos, O ridículo (2016), o primeiro filme desta noite, traz Mossy como um setentão às voltas com a impotência sexual. “É sobre a estética da brochada, sobre a importância ou não dela”, resume. Intervalo, outro curta dele, tem a atriz mineira Laddy Francisco, de 77, interpretando a si própria. Em meio à velhice e à decadência, é expulsa de casa pela filha, que deseja viver ali com a amante. Entre as cenas há registros reais de moradores do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro.
A mostra também homenageia os diretores Alfredo Sternheim e Afrânio Vital. A curadora Andrea Ormond afirma que a intenção é fugir do óbvio. “Mossy é um pornochanchadeiro, mas temos também o seu outro lado em Ódio, filme policial de ultraviolência. Já Sternheim faz uma transição: é um intelectual na Boca do Lixo, diretor da fase mais pornográfica, diferente da pornochanchada. Vamos mostrar como ele era sofisticado, mas com a cara de pau e a coragem de comentar questões como a homossexualidade, pouco convenientes na época”, diz. Afrânio Vital é um artista peculiar, explica Andrea: “Totalmente esquecido, é um dos poucos diretores negros do cinema popular, discípulo de Carlos Hugo Christensen. Tem o lado do escracho, só que mais existencialista”.
CURTA CIRCUITO
Segunda, 20
20h: O ridículo, de Carlo Mossy; Giselle, de Victor de Mello. Depois da sessão, a atriz Monique Lafond conversa com o público
>> Até 25 de abril. Cine Humberto Mauro (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Entrada franca. Programação completa: www.curtacircuito.com.br
Entrevista - Carlo Mossy, DIRETOR
“A maioria dos cineastas é covarde”
Muita gente que vai à mostra Curta circuito nem era nascida quando surgiu a pornochanchada. Como você vê a relação do público atual com esse gênero?
As pornochanchadas continuam existindo, mas de uma forma modernosa. O conteúdo continua igual. Filmes como Se eu fosse você 1 e 2, que os diretores chamam de comédia de situação ou erotizadas, mas jamais de pornochanchada, têm exatamente o mesmo conteúdo das pornochanchadas antigas. Não têm nada de pornô. É chanchada, só que com peitinho, bunda e palavrão, que não apareciam antes por causa da censura. A palavra pornô é um rótulo dado pelos invejosos, críticos do cinema nacional da época, cineastas que viam que ‘filmes cabeça’ não davam retorno. Então, criaram esse rótulo para desclassificar o cinema popular, acreditando que o público cairia nessa lorota. Ele foi vital para o cinema nacional. Neopornochanchadas tipo E aí, comeu? têm dado muita bilheteria agora. Não sei como tá a cabeça do público, mas o pessoal adora pornochanchada, são filmes que têm alma, mesmo sem produção cara. Os artistas se igualam, o conteúdo se iguala, porque todo brasileiro já nasce pornochancheiro. Uns assumem, outros se escondem atrás da falsa moralidade, mas todos nós gostamos do popular, do erótico, da comédia.
A pornochanchada surgiu durante a ditadura militar, em meio à censura. Hoje, o país enfrenta grave crise política. O que este momento conturbado pode render ao cinema brasileiro?
Nos anos 1970, mesmo com a censura, havia uma crítica singela aos políticos, prevalecia sempre uma crítica não velada à política da época, a corrupção existia. Não tão flagrante como hoje, mas já existia um sentimento da sacanagem política. A maioria dos cineastas de hoje é muito covarde, não desenha em seus filmes o mínimo de contrapartida ao momento político atual, que é surrealista. Em termos de políticos, a situação brasileira é tão inverossímil que daria uma ficção, ninguém acreditaria que esse tipo de coisa existe. O que você pode fazer hoje? Estou escrevendo um roteiro: Os deuses da corrupção.
Como seria esse filme?
Os personagens são abduzidos por alienígenas para ensinar em outro planeta a fórmula da corrupção, mas tudo uma brincadeira. Não dá para levar a sério o que está acontecendo, apesar de sério. Hollywood mostra muito bem assuntos assim, mas nós não temos roteiristas capazes de desenvolver um filme sobre o momento atual, nem diretores capazes de absorver este momento. A maioria se beneficia de Lei Rouanet, com beijos na mão do lulopetismo. Os governos anteriores comiam pelas beiradas, e o lulopetismo, com uma fome avassaladora, começou a roer o biscoito pelo meio. Hoje, a gente vê, graças à Lava-Jato, que o lulopetismo era apenas ‘laranja’ do PMDB e do PSDB. Quem roubou mais foi o PMDB. Se a gente jogar (o tema corrupção) pro cinema, não sei... No teatro, funcionaria melhor. Uma sátira, uma peça sobre o dia a dia político brasileiro. Mas não temos esse roteirista no Brasil.