A hegemonia branca das edições de 2015 e 2016 do Oscar acarretou polêmicas, boicotes e discussões. A Academia de Hollywood fez seu mea-culpa: mudou as regras, chamou novos votantes, tentando garantir a diversidade que reflete o mundo atual.
O ''Oscar não tão branco'', como vem sendo chamada a edição do prêmio do dia 26, tem, em uma década, o maior número de indicações de profissionais negros. Três produções que concorrem a melhor filme – Moonlight: Sob a luz do luar, Um limite entre nós e Estrelas além do tempo – calam fundo na questão racial.
Esqueça. Não há filme mais urgente para assistir agora do que Eu não sou seu negro, em cartaz no Cine Ponteio. Candidato ao Oscar de melhor documentário, o longa-metragem do cineasta Raoul Peck – um haitiano de 63 anos criado entre a África, a Europa e os EUA depois que sua família fugiu da ditadura de Papa Doc (1957-1971) –, tem um ponto de partida improvável: filmar a história de um livro que nunca existiu.
saiba mais
'Eu Não Sou Seu Negro' estreia nesta quinta-feira
Retrato visceral da vida afro-americana, 'Moonlight' ganha trailer; assista
Com quatro indicações ao Oscar, A qualquer custo resgata a temática western
"La la land" vence o Oscar do cinema britânico
Moonlight - Sob a Luz do Luar é sobre um homem que adquire sua identidade
Escritor e ativista dos direitos humanos, James Baldwin (1924-1987) deixou, ao morrer de câncer no estômago, 30 páginas do manuscrito Remember this house. A obra contaria a história dos EUA a partir de três protagonistas do movimento negro: Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King. Os três foram assassinados entre 1963 e 1968, no ápice dos conflitos pelos direitos humanos.
A partir desse material, Peck realiza o mais impactante dos filmes. Com uma montagem primorosa, ele combina entrevistas, imagens históricas, filmes, comerciais e música pop para apresentar uma imagem da vida dos negros nos EUA, até a atualidade. Costurando todo o material, está o próprio Baldwin, seja em imagens de arquivo, seja na narração emocionante de Samuel L. Jackson.
''Não é sobre ser quem sou que reside o problema. O problema está no outro. Baldwin tem uma frase muito forte sobre isto: 'Branco é uma metáfora para poder'. O racismo é só um dos aspectos desse abuso'', afirmou Peck em entrevista ao Pensar, concedida nesta semana, de Berlim, onde o diretor apresenta seu novo filme, O jovem Karl Marx.
O que o levou a fazer um filme sobre a obra de James Baldwin?
Descobri Baldwin ainda muito novo. Tinha 17, 18 anos na primeira vez que li um livro dele, The fired next time (1963). Nunca parei de ler Baldwin, que se tornou uma espécie de mentor político, moral e filosófico para mim. Dez anos atrás, ao me deparar com o que estava acontecendo com o mundo, achei que essa voz tinha que voltar. As pessoas estavam começando a esquecer Baldwin. E este filme só foi possível porque a família me cedeu o direito de toda a obra: livros, manuscritos, cartas pessoais.
Samuel L. Jackson não é apenas o narrador do filme, ele é a voz de Baldwin. Tudo o que ele fala é de Baldwin?
Não inclui uma só linha. Todas as frases foram retiradas dos livros e textos. Eu queria um confronto direto de Baldwin com a plateia. Ele fala diretamente para nós e precisava criar um personagem que fosse ele. Falei a Samuel L. Jackson que ele tinha que ser essa voz, e que tudo – emoções, ironia – tinha que vir dele. Se houvesse uma distância que fosse entre o narrador e Baldwin, seria terrível para o filme.
Quem são as pessoas que, atualmente, têm um pensamento semelhante ao de Baldwin?
Vozes como Baldwin, Martin Luther King, Malcolm X estão fazendo uma falta terrível. A maior parte dos líderes dos movimentos articulados por negros foi assassinada. Como uma repressão tão violenta destas vozes, não devemos ficar surpresos de que hoje em dia exista dificuldade de encontrar personagens como estes. Espero que mude, pois precisamos ser ativos de novo, estar na linha de frente.
Donald Trump aparece de maneira breve no filme, numa imagem. Por que decidiu inclui-lo?
Essa decisão foi feita antes que ele se tornasse presidente. Esta é a ironia. Há uma série de americanos que acham que basta dizer ''eu sinto muito'' para que eles fiquem inocentes de novo. Quando Baldwin diz que ''imaturidade se tornou uma espécie de virtude'', quis ilustrar isto com a imagem de políticos, de escândalos que vão e que vem, numa perfeita inocência. Esta foi uma maneira artística de eu mostrar isto. É claro, Donald Trump foi um desses exemplos. Tanto ele quanto a maior parte dos presidentes e dos candidatos americanos.
O senhor acha que existe uma esperança para o ''sonho americano'' na América de Trump?
Este filme não é só sobre os Estados Unidos. É um filme que fala sobre humanidade, que fala sobre todo e qualquer lugar. Os mesmos problemas existem na França, na Alemanha, na Noruega, no Brasil. É mais uma questão de como olhar para o outro, de como vivemos nossa história sem olhar para as outras. Só que existe apenas uma história. O que podemos fazer é escolher entre olhar ou ignorar os outros lados da história. Isto vem de um artigo de Baldwin. O que estou querendo dizer é que o preço do racismo não é um problema dos negros, é basicamente algo que foi criado por aqueles que detêm o poder. É um modo de pensar bastante humanista, que não antagoniza ninguém, não faz discursos violentos. Baldwin diz: ''Você tem que enfrentar sua realidade, seja de onde você seja. Caso não o faça, a realidade vai fazê-lo desaparecer também, já que fazemos parte da mesma história''. É como o Titanic. É uma ilusão pensar que se você está na primeira classe do navio não precisa se preocupar com aqueles que estão na terceira.
Falando sobre o Oscar, o que o senhor achou das mudanças recentes pelas quais a Academia de Hollywood passou?
Essa mudança é um tanto superficial. Este não é o problema principal. A grande questão é o grupo de pessoas que decide quais filmes serão feitos e por quem. Ninguém está falando sobre isto, sobre o poder dos estúdios, o poder das pessoas que têm dinheiro. São eles que decidem. E essas pessoas são, em sua maioria, homens brancos. A discussão do Oscar não tão branco é OK, mas não é a mais importante.
La la land: Cantando estações ou Moonlight – Sob a luz do luar?
É claro que sou muito mais próximo da realidade de Moonlight, pois é a que eu conheço. Não quero comparar os dois filmes, mas o que posso dizer é que a realidade de Moonlight é muito pouco explorada pelo cinema americano. E ela foi apresentada de uma maneira incrível. Claramente, o filme de Barry Jenkins é o meu favorito.
Como é a vida de um imigrante haitiano na América?
Os haitianos têm um grande orgulho de sua história. Então, meu confronto com o racismo na América ocorreu de uma maneira diferente, pois eu sempre soube que sou muito maior do que apenas uma pessoa negra. Nunca deixei que a raiva decidisse por mim. Sempre soube que poderia ter o mundo, que não sou apenas um tipo de pessoa, sou muito mais. Não acordo toda manhã, me olho no espelho e digo: ''Oh meu Deus, sou negro''. Vivo minha vida, luto minhas lutas, sou aberto ao resto do mundo. Para mim, é isto que importa.