“Você gosta de axé?”. A primeira pergunta à repórter quem faz é o entrevistado, o diretor Chico Kertész. E a resposta, definitivamente, não importa. Axé: Canto do povo de um lugar, documentário em cartaz no Cine Belas Artes, não faz juízo de valor com o gênero nascido na Bahia há mais de 30 anos (e que foi endeusado e demonizado em igual medida). O lançamento (intencional, claro) às vésperas do carnaval ajuda a entender o axé – um gênero que engloba muitos estilos e que foi mercantilizado à exaustão. O filme, em duas horas, coloca em perspectiva uma história com muitos protagonistas.
Kertész é um baiano de 36 anos que, como todos os de sua geração, tem a vida permeada pelo gênero. Exatamente na virada de 2015 (ano que celebrou as três décadas do axé) ele percebeu que “não havia um documento relevante” sobre o tema. Já em janeiro, o diretor, junto à produtora Macaco Gordo, começou sua pesquisa. Foram 98 entrevistas (Caetano e Gil, Ivete e Daniela, Luiz Caldas e Sarajane, além de produtores, empresários, jornalistas) e horas incontáveis de programas de TV (principalmente dos canais locais). Chegou a comprar em sucata um aparelho de u-matic (formato de fita de vídeo analógico, hoje em desuso) para poder digitalizar imagens que estavam perdidas nos arquivos das emissoras.
Chamou-lhe a atenção a ausência de uma pesquisa histórica sobre o axé. “Há alguns documentários sobre trio elétrico, dissertações de mestrado, mas nada que nos guiasse para nossa pesquisa.” Então, para construir o roteiro, ele e sua equipe tiveram que fazer a sua própria. Criaram uma linha do tempo – de 1985 a 2015 – utilizando como referência as músicas que estouraram em cada carnaval.
O ponto de partida é Fricote (uma mistura de reggae, música caribenha, ijexá e samba), de Luiz Caldas, considerado o marco inicial da axé (ainda que o carnaval soteropolitano seja anterior a isso). A denominação axé music só seria criada dois anos mais tarde, no carnaval de 1987, pelo jornalista Hagamenon Brito (leia entrevista com ele nesta página). Nesta época, seus artistas já vinham se tornando conhecidos no Brasil, graças a uma presença massiva no programa do Chacrinha.
BASTIDOR Desta maneira, o diretor percorre, indo e voltando no tempo, uma história em que se misturam os artistas, os donos de blocos, os trios elétricos. Em meio a nomes populares de ontem (Banda Reflexus, Gerônimo, É o Tchan) e de hoje (Carlinhos Brown, Saulo Fernandes, Cláudia Leitte), ele ainda recupera figuras de bastidor. A mais importante delas é Wesley Rangel. O produtor musical, morto em janeiro de 2016, aos 65 anos (o documentário é dedicado a ele), foi o criador do WR Estúdios. Ali, gravou praticamente todos os artistas do axé antes de boa parte deles ter contrato com gravadoras.
Se Chacrinha foi o responsável por apresentar os artistas do axé ao “Sul maravilha” – e neste ponto o estouro de Daniela Mercury, no início dos anos 1990, foi determinante para se entender a dimensão que o gênero tomava – foi o Olodum que fez a ponte com o mercado externo. É curiosa a história de como Paul Simon chegou ao Olodum (numa noite, foi à sede do grupo dizendo quem era e, bem, ninguém entendia direito o inglês do compositor). Foi ele a abrir as portas do mercado externo para o grupo de percussionistas – e uma imagem de 750 mil pessoas assistindo ao show de Simon com o Olodum no Central Park explica melhor do que qualquer palavra.
Depois dele houve outros, o ápice com o clipe de They don’t care about us, que levou Michael Jackson e Spike Lee ao Pelourinho para gravar com o grupo. Outra figura-chave para a internacionalização dos tambores do Olodum foi David Byrne, que gravou com o Olodum. O ex-líder dos Talking Heads não aparece no documentário. “Ele vai aparecer no seriado de TV”, comenta Kertész. O primeiro corte do filme ficou com três horas e meia e como nem todos os entrevistados e histórias puderam entrar na versão final do filme, o diretor afirma estar em negociação com o Canal Brasil para uma série.
Mas a ausência mais nítida em Axé: Canto do povo de um lugar é o de um tom crítico. O documentário deixa de lado desavenças, a exploração comercial em excesso dos artistas, a falta de renovação e a própria descaracterização do carnaval. Hagamenon Brito é uma das poucas vozes dissonantes do documentário. Alguns dos artistas (como Márcia Short, ex-Banda Mel) chegam a ensaiar, de maneira discreta, uma crítica, chamando a atenção para a desunião da classe e a exploração dos donos dos blocos. Sem fazer este mea culpa, Axé: Canto do povo de um lugar é um retrato bem-acabado de uma história passada. Peca, no entanto, ao não apontar caminhos para o futuro.
Axé “de montanha”
Alguns dos maiores blocos do carnaval de Belo Horizonte construíram seu repertório ancorado em canções antigas de axé. Baianas Ozadas e Então, Brilha!, por exemplo, tocam músicas de Olodum, Timbalada, Daniela Mercury, entre outros. Pois no carnaval 2017 vai ter axé made in BH. Ou “de montanha”, como prefere denominar o bloco Juventude Bronzeada. Hoje também um dos grandes blocos da cidade – sua bateria de 300 integrantes reuniu 30 mil foliões em 2016; a expectativa é de que neste ano 50 mil compareçam ao desfile, na Terça-feira Gorda – o Juventude acabou de lançar o álbum virtual Tropical lacrador.
Todas as oito faixas são autorais e foram compostas coletivamente, por integrantes do bloco e de outras formações. “Axé no horizonte e Salvador/Timbau aquecido/Acende o toque do tambor” são os versos de uma das canções, Arco-íris (de Sara Campos e Rodrigo “Chapinha” Castriota).
“O axé de montanha mescla as influências que a gente recebe da música baiana com outros elementos. Nossas músicas têm um pouco de cumbia, frevo, reggae. Os arranjos das harmonias remetem, em alguns momentos, à mineiridade”, afirma Marcela Pieri, uma das fundadoras do Juventude.
Três perguntas para... Hagamenon Brito jornalista baiano
O mercado do axé existe para além do carnaval? Já não existe há algum tempo. E este não é um problema só do axé. O rock nacional, como segmento mercadológico também acabou, só que por outras razões. O axé chama a atenção quando chega o carnaval porque (a festa) é a grande vitrine da música baiana. O carnaval não vai deixar o axé morrer. Mas, se você pegar as 20 músicas (mais tocadas) do ano passado e do ano retrasado, não tinha nada de axé. Daniela (Mercury), Carlinhos Brown, Ivete e Cláudia Leitte são nomes de exceção. Eles têm o que se chama se star quality (carisma) pop.
Você vê renovação no gênero? Não, e aí está um dos erros do axé. Ele não soube se renovar, tampouco renovou seu público. Também não houve cooperação entre os artistas do axé. Isso o sertanejo faz muito bem, coloca gente nova abrindo show para os velhos. Luan Santana, Gusttavo Lima eram dados praticamente de graça (pelos empresários) até atingir um grau na carreira. O axé é muito mesquinho, ganancioso. Suas estrelas viveram em feudos, sem generosidade para fomentar o novo. O axé virou praticamente toda a cena baiana. Tem nomes que estão indo para o pagode, como Léo Santana; tem os artistas do arrocha. Mas nós temos que prestar atenção no BaianaSystem, que não é axé, faz uma mistura de ragga com guitarra baiana. Arrastam multidões no carnaval.
Como é o carnaval de Salvador atualmente? Ele está sentindo a crise, claro, tanto que caiu patrocínio. O Gil me falou uma vez que não se pode falar que o carnaval vai acabar, pois ele é mutante. Do ano 2000 para cá, cresceram os camarotes e o número de festas indoor. Tem turista do Rio e São Paulo que vai parar Salvador e não chega na rua. Vai direto para camarote, que hoje são praticamente grandes clubes eletrônicos com DJs internacionais