Vão se completar 20 anos de Tropas estelares. Em 1997, Paul Verhoeven esteve a ponto de ser crucificado pelos críticos que se escandalizaram com sua ficção científica sobre uma brigada internacional formada para enfrentar insetos gigantescos que invadem a Terra. Jovens arianos, uniformes que lembravam os SS. O mínimo que Verhoeven foi chamado foi de nazista. Ele dá de ombros. Não entenderam. O filme era crítico, não celebratório. A revista Cahiers du Cinéma, a bíblia do cinema autoral, colocou os pingos nos is.
Antes de ser imagem, o filme é som – o som do estupro da personagem Michelle, interpretada por Isabelle Huppert. Michelle junta os cacos, literalmente – os cacos de vidro, limpa o local, toma banho. Que mulher é essa? Só bem depois ela vai dizer a seu pequeno círculo o que ocorreu – a sócia e seu marido, que por sinal é o amante de Michelle; o ex. Michelle é empresária e tem problemas com a equipe que realiza o novo game da empresa, cuja heroína é vítima de estupro. Michelle comanda exatamente como a cena deve ser.
IMAGINÁRIO
Holandês de nascimento, Paul Verhoeven conseguiu impor seu imaginário em Hollywood. Como os autores míticos do passado, ele conseguiu utilizar a máquina do cinemão para se expressar. Nos EUA, a ficção científica foi seu território – Robocop, O vingador do futuro, Tropas estelares, O homem sem sombra. Elle joga procedimentos de ficção científica para a ficção dentro do filme, o game. Sua dramaturgia, aqui, está mais próxima de Instinto selvagem, o Verhoeven de 1992 que está na origem do mito de Sharon Stone. Um assassinato, uma mulher suspeita. Agora, o estupro, e o homem usou máscara.
Thriller, suspense, erotismo. Michelle cobra de sua equipe que a violência do game seja cada vez mais explícita. E, em torno dela, as coisas também se radicalizam – Michelle tem problemas com o filho, manipulado pela mulher (que não suporta a sogra, e o sentimento é recíproco), tem problemas com a mãe, com seu amante jovem e até com o pai, preso por um crime hediondo, no qual envolveu a filha, ainda criança. Na coletiva no Festival de Cannes – o filme participou da competição pela Palma de Ouro, em maio –, o diretor afirmou que Elle não deixa de ser sua forma de observar e questionar a chamada 'normalidade'. O excesso é ao mesmo tempo o desafio e o fascínio do filme.
''Vivemos num mundo que perdeu a sutileza. O filme participa desse movimento.'' Michelle está longe de ser frágil. Faz um jogo perigoso tentando chegar à identidade do agressor. O problema é que ele pode ser qualquer um – vizinho, amigo, funcionário.
Acuadas, as mulheres de Verhoeven não se intimidam – não a Michelle de Huppert. E o interessante é como essa mulher, que num momento parece estar perdendo o controle de tudo, recupera os fios da própria vida. Michelle é jogo duro – Isabelle em pleno controle das emoções.
Verhoeven chegou a comparar Elle a Paixão de Cristo, de Mel Gibson. ''O que se vê nesses filmes não é nem um pouco agradável. O estupro é brutal, foi encenado para ser. Em geral, a gente pensa no sexo como criativo, mas pode ser violento, e aqui é. O filme é sobre a força e a superação das mulheres. Cansei dos homens, prefiro as personagens femininas. Elle, A espiã. Meu próximo filme, se tudo der certo, será adaptado de meu romance sobre Cristo. Maria, estuprada por um centurião romano. De certa forma, Elle já é um ensaio.'' .