Numa cena de Creepy – em cartaz em Belo Horizonte desde quinta-feira com duas sessões diárias no Cine Belas Artes (16h20 e 21h10) – o personagem principal, o ex-detetive Koichi Takakura (Hidetoshi Nishijima), relata o caso de um criminoso americano que estuprou quatro prostitutas algemadas num quarto. Depois, levou-as de avião para uma montanha, soltou-as numa floresta e as caçou com um rifle. “Tudo é maior nos Estados Unidos”, ele ironiza.
A fala poderia até ser interpretada como crítica aos exageros dos suspenses hollywoodianos, mas o diretor Kiyoshi Kurosawa, um dos maiores nomes do cinema japonês contemporâneo, deixa claro em alguns minutos de projeção que se trata de uma ironia com ele mesmo. As atrocidades cometidas pelo assassino de Creepy deixariam muitos psicopatas das ficções americanas sentindo-se pequenos.
Dividido em duas partes, que se distinguem por uma abrupta mudança de tom, o filme lembra um suspense policial tradicional – a princípio. Na trama, Koichi Takakura se muda com a mulher (Yuko Takeuchi) para uma cidade do interior, após um incidente no trabalho. Aposentado, ele agora se dedica a ensinar criminologia numa universidade, mas, atraído pelo instinto da antiga profissão, decide investigar por conta própria o caso de uma família local que desapareceu misteriosamente anos antes.
Enquanto isso, em sua nova casa, o vizinho Nishino (Teruyuki Kagawa) apresenta um comportamento, digamos, suspeito. Num momento, ele é um homem amável e educado. Segundos depois, vira um sujeito agressivo e abusivo.
“Quando a identidade do criminoso é revelada, a estrutura da primeira parte do filme é destruída, e o que se segue é um desenvolvimento caótico”, define o diretor, que não tem qualquer parentesco com o famoso cineasta Akira Kurosawa (1910-1998). “O roteiro de Creepy é inspirado num caso verídico que ocorreu no Japão, mas não estou fazendo um documentário. Por essa razão, inseri a sementinha da fantasia obscura, como uma forma de oferecer uma ‘diversão’ ao espectador”, afirma.
ORIGENS Apesar de elogiado em festivais estrangeiros, Creepy teve uma repercussão bem menor do que outros títulos de Kiyoshi Kurosawa. Em 2003, ele foi indicado à Palma de Ouro pelo drama Bright future. Filmes como Seance (2000), Sonata de Tóquio (2008) e Para o outro lado (2015) também foram projetados no Festival de Cannes, na mostra Un Certain Regard. Mas muitos críticos consideram a nova empreitada do cineasta um retorno às suas origens do terror, quando ele fez A cura (1997) e Pulse (2001).
Este último, em que fantasmas tentam invadir o mundo real pela internet, é um de seus trabalhos mais famosos e ganhou um remake americano em 2006, numa das várias tentativas de Hollywood de reproduzir as histórias de horror japonesas que se tornaram icônicas, especialmente após o sucesso de Ring: O chamado (1998), de Hideo Nakata, recriado por Gore Verbinski em 2002, com Naomi Watts no papel principal.
“Só para deixar claro, eu não assisti ao remake de Pulse”, revela Kurosawa, sem explicar o motivo. “De qualquer forma, se você pensar no assunto, um fantasma também é um ser humano, não um monstro. É uma pessoa que faleceu. Por isso, ele ou ela só está tentando existir vagamente no mundo real. Não significa que queira atacar ou assustar os vivos. Mas essa é apenas uma opinião, e eu até gosto desses personagens de Hollywood completamente deformados, que ultrapassam o limite do real. Há vezes em que me divirto muito.
Uma das principais características do filão do horror japonês é justamente a presença de espíritos como ameaças, às vezes numa metáfora sobre a solidão – raramente são reduzidos a entidades puramente diabólicas e violentas. Kurosawa reconhece que a solidão é um de seus temas preferidos e diz acreditar que o sentimento é um dos maiores males das metrópoles contemporâneas. Para ele, a presença da morte (e dos fantasmas) no gênero de terror deve ser muito menos um mecanismo de impacto e mais um caminho para se chegar a uma reflexão sobre a existência:
“Em muitas histórias, a morte significa o fim da trama, por ser o término da tristeza ou do ódio. Mas existe uma outra área em que a trama se inicia, inclusive de maneira complexa, justamente depois disso: o terror. Não sabemos quando a morte vai chegar, então não seria importante pensar no que acontece depois?” (Fabiano Ristow, Agência Globo)
Três perguntas para...
JOÃO LANARI BO
professor de cinema na UnB e autor do livro Cinema japonês (Editora Giostri)
No livro, o senhor correlaciona eventos históricos a transformações estéticas no cinema japonês. Pode citar um evento importante nesse sentido?
Provavelmente, o momento seguinte à Segunda Guerra. Os americanos ocuparam o Japão e impuseram uma censura própria, disseminando no cinema mensagens como direitos civis e feminismo. Diretores consagrados, como Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu, sofreram muito impacto desse momento político.
Na sua opinião, o que ajudou o cinema japonês a ganhar projeção mundial?
Por uma razão cultural, o país tem facilidade em produzir imagem. A própria escrita é imagética.
O cinema de gênero no Japão é muito forte. Como explica a potência dos filmes de terror?
Os japoneses têm uma antiga tradição de literatura de horror. Há particularidades. Os fantasmas, em geral, são mesmo diferentes. Podem ser vingativos, mas dificilmente são agressivos. Não há um Freddy Krueger ou a figura do zumbi, por exemplo. Há mulheres oprimidas em vida que se vingam após a morte. É um mundo mais psicológico e menos barulhento, e que abre mão de efeitos especiais mirabolantes..