Não tem segredo. É uma questão de relações públicas, dinheiro e influência.
Pelo menos é o que fica claro da sala onde David Schurmann comanda a campanha para o Oscar de Pequeno segredo. Na sede da empresa da Família Schurmann, um andar num edifício tranquilo do Itaim, um quadro escrito à mão expõe, em inglês, as três forças que um filme tem que ter para alcançar a Academia de Hollywood.
Mas antes do Oscar – os indicados serão anunciados em 24 de janeiro; a premiação será em 26 de fevereiro – Pequeno segredo faz seu maior teste. Chega aos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira. Serão ao menos 280 salas. É melhor começar menor e depois crescer (em número de salas). “Fica mais bonito”, afirma David.
E o filme chega com curiosidade. David, de 42 anos, afirma ter levado muita paulada desde que Aquarius, o grande favorito, foi preterido em setembro para tentar a sorte na maior premiação do cinema mundial. “As primeiras 24 horas foram as mais difíceis. Gente, o que é isso? Por que estão batendo num filme que a maioria não viu?”
E não tinha visto mesmo. Até aquele 12 de setembro, quando de pé de página Pequeno segredo virou manchete, David tinha feito algumas cabines (exibições exclusivas para jornalistas) em São Paulo. Até o anúncio, somente três profissionais haviam comparecido. Depois, para as sessões para a imprensa até celulares dos jornalistas foram recolhidos (medida que costuma ser adotada somente no caso de blockbusters com super-heróis).
David Schurmann pegou na câmera pela primeira vez aos 13 anos. Depois de circular o mundo de barco com sua família, instalou-se na Nova Zelândia por seis anos, onde estudou cinema.
DOCUMENTÁRIO Voltou a residir no Brasil em 2000. A partir daí, sua carreira como documentarista teve início com produções como a série da Família Schurmann exibida no Fantástico e o longa O mundo em duas voltas (2006). Em ficção, fez curtas experimentais (um até silencioso) na faculdade e uma incursão (que quase ninguém viu) no cinema de horror com Desaparecidos (2011).
Agora, só pensa no Oscar. Depois de conversar com o Estado de Minas, viajou para Los Angeles para acompanhar o início da campanha. Deve retornar a São Paulo amanhã. À noite, participa de uma pré-estreia. Viaja na terça para outra première, em Florianópolis. Blumenau e Porto Alegre terão exibições na quarta. Na quinta, dia da estreia nacional, David parte para o México. No Festival de Los Cabos foi convidado para falar para a indústria mexicana sobre novos projetos.
Sim, as coisas já começaram a mudar. E podem mudar ainda mais caso consiga a indicação. O exemplo vem da Nova Zelândia. “Antes de O senhor dos anéis, Peter Jackson fez três, quatro filmes ‘tosquésimos’ de terror. Depois, Almas gêmeas (1994), um filme baseado em fatos reais que ganhou o Festival de Veneza. O governo tinha investido nele e feito um acordo para ele levar as produções para o país. Pois depois de Almas gêmeas ele fez O senhor dos anéis e ganhou 11 Oscars. Isso de um ‘paisinho’ de 4 milhões de habitantes. Quantos Oscars a gente trouxe mesmo?”.
A história do cineasta, do filme e o que ele vai fazer para tentar chegar a ser o Peter Jackson brasileiro você lê a seguir.
UM FILME FEITO PARA CHORAR
Você vai chorar. Nem que seja nos últimos minutos de projeção. David Schurmann encerra Pequeno segredo com imagens que captou da irmã Kat navegando com sua família pelo mundo.
“Foi um debate grande. Será que vamos ou não exagerar (colocando as imagens da menina, que morreu em 2006, em decorrência da Aids)? A decisão de colocar as imagens veio em decorrência de duas coisas: mostrar a Kat dando a volta ao mundo, tudo o que o filme não mostra. E como o filme é baseado em uma história real, quando você a vê sorrindo com o Vilfredo e a Heloísa, vê que é de verdade”, afirma Schurmann.
Veja o trailer oficial:
Já são dois meses desde que Pequeno segredo saiu vencedor entre as 16 produções nacionais que tentavam a vaga brasileira para a disputa do Oscar. Nesta altura, qualquer Fla-Flu gerado pela comparação com Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, o grande filme que o Brasil lançou em 2016 (por suas qualidades estéticas e pelo debate que gerou, muito além do próprio cinema), não faz mais sentido. São obras de naturezas absolutamente distintas e cada uma está seguindo seu próprio caminho, a despeito das polêmicas geradas.
Claro, os filmes capitalizaram com o debate. Aquarius está em sua décima semana em cartaz, já superou 350 mil espectadores. A trajetória de Pequeno segredo tem início nesta quinta. Schurmann, inteligentemente, prefere não fazer nenhuma projeção de números. Repete, durante a entrevista, a palavra “diferente” ao falar de seu filme. Não é filme autoral, tampouco uma produção descartável, como o são as grandes bilheterias do cinema nacional.
Bem, nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Pequeno segredo tem seus méritos, mas escorrega em pontos essenciais.
Narrativa multiplot, tem três tramas capitaneadas por mulheres. A principal tem como figuras centrais Kat (Mariana Goulart) e Heloísa (Júlia Lemmertz). A menina, entrando na adolescência, convive com uma saúde frágil. O motivo de tantos cuidados médicos será revelado na parte final da trama – ela foi adotada pelo casal Heloísa e Vilfredo (Marcello Antony), é portadora do vírus HIV (este é o pequeno segredo).
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PRECONCEITO Também na Nova Zelândia vive Bárbara (a irlandesa Fionnula Flanagan) e o marido. A mãe de Robert quer a todo custo que o filho volte para casa. No retorno, a grande surpresa. Ele está casado com uma brasileira. A velha mulher, preconceituosa ao extremo, trata a nora com desprezo.
São três eixos narrativos. O filme não localiza o tempo, e alguém que nunca tenho ouvido falar nos Schurmann deverá ter uma outra fruição da história. Algo complicado no Brasil, uma vez que as aventuras da família catarinense foram conhecidas primeiro por meio da TV.
É uma narrativa que aborda questões universais: amor, família, doença, superação. Fotografia e música são grandes momentos. A montagem é outro ponto alto, pois vai conduzindo, com maestria, o espectador para o cerne da questão.
O problema é que ele não chega. Não há um ápice dramático em Pequeno segredo, a despeito de todas as questões que a história trata. O filme é apresentado numa mesma toada, com diálogos rasos e cenas rasteiras dignas de qualquer novela (uma delas dá a entender que Bárbara está envenenando o marido; algo que vai se explicar mais tarde).
E há ainda as personagens. As que mais sofrem com a fragilidade dramatúrgica são a Heloísa de Júlia Lemmertz (um poço de virtude) e a Bárbara de Fionnula Flanagan (uma bruxa má dos contos de fadas). Schurmann sai em defesa, dizendo que a Bárbara verdadeira (uma senhora de idade, que vive hoje na Austrália, tanto que é a única que teve o nome trocado) é tal e qual a do filme.
Que seja. A arte, neste caso, não deveria ter imitado a vida.
META É FISGAR CORAÇÃO DA ACADEMIA
Duzentas e cinquenta pessoas. Sem o aval dos “velhinhos”, como Schurmann se refere aos integrantes da Academia de Hollywood (idade média de 65 anos) que fazem a primeira triagem para os candidatos ao Oscar de Filme Estrangeiro, Pequeno segredo morre na praia. Serão eles que definirão quais os nove entre os 85 inscritos irão para a próxima etapa, ou seja, os cinco indicados na categoria (que serão anunciados em 24 de janeiro).
E o diretor tem consciência de que algumas vagas já têm dono. Contratou Steven Raphael, da empresa Required Viewing, estrategista que deu Oscars a Mar adentro (Filme Estrangeiro para a Espanha, em 2004) e O labirinto do fauno (fotografia, direção de arte e maquiagem para a produção do mexicano Guillermo del Toro, em 2006).
Foi também Raphael quem fez a campanha de O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburger, que chegou até a lista dos nove. “Ele me disse que, das cinco vagas, três já estão definidas. Não lembro todos os filmes que falou, mas Elle (de Paul Verhoeven, a escolha da França) é um deles. Então só existem dois lugares para entrarmos”, diz Schurmann.
CARGA DRAMÁTICA De acordo com o diretor, os quatro pontos fundamentais que Raphael levantou sobre Pequeno segredo que agradam aos votantes da Academia são os seguintes: ser um caso real; ter qualidade técnica superior; ter forte carga dramática e ser a história do próprio diretor. “Algo que aqui veem como negativo, mas que é positivo lá fora”, arremata.
Para esta etapa, são necessários US$ 250 mil – US$ 60 mil vieram de um aporte da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Schurmann ainda não tem toda a verba. “É uma campanha barata. Para outras categorias, custa US$ 1 milhão para cada etapa. Agora, o Pequeno segredo vem como um underdog (azarão), algo que o americano gosta muito. É o caso de Quem quer ser um milionário? (2008), do Danny Boyle, um filme com um monte de indiano desconhecido, que ele tentou colocar em festivais e foi rejeitado. Encontrou um estrategista do Oscar e o cara falou: ‘Nós vamos para a Academia’. Levou oito Oscars.”
Bem, as pretensões de Pequeno segredo não são tão grandes. Está dando um passo depois do outro. O filme foi inscrito também para o Globo de Ouro – os candidatos serão anunciados em 12 de dezembro.
Em outubro, sem a presença de alguém da equipe do filme brasileiro, foram iniciadas as projeções para votantes da Academia e do Globo de Ouro. São exibições na parte da tarde, preferência dos votantes. “Estava só nosso estrategista e ele falou que, espontaneamente, o pessoal bateu palmas depois da sessão.”
Schurmann viajou no fim do mês para Los Angeles para acompanhar novas sessões. Depois disto terá início o trabalho junto à mídia especializada, como as publicações Variety e Hollywood Reporter.
Agora, caso o filme esteja entre os nove pré-selecionados, o trabalho recomeça do zero. E aí será muito maior, pois o número dos votantes sobe. “Mais da metade dos membros da Academia vota. Aí todo o mundo tem que fazer marketing para o filme, pois temos que convencer o pessoal a assisti-lo.”
E ele sonha alto. A Diamond Films, distribuidora de Pequeno segredo no Brasil, é a grande compradora das produções da The Weinstein Company na América Latina (dos irmãos Bob e Harvey Weinstein, figurões de Hollywood e os caras que conseguiram, por exemplo, quatro indicações para Cidade de Deus em 2004).
“Os caras (da Diamond) têm uma relação com Bob e Harvey. Estão tentando marcar uma reunião com o Harvey. Lógico que no Oscar estarão preocupados com os filmes deles. Mas só de saberem do nosso podem ter uma influência enorme, ligar para os amigos falando do filme. É assim que funciona nos EUA.”
Uma vez criado o barulho em torno do filme, o caminho está aberto. “Se nossa estratégia der certo, temos grande chance de chegar entre os cinco.” Mas, antes, precisamos passar pelo crivo dos velhinhos.
PAI FICA EM SEGUNDO PLANO NA TELA
Heloísa e Vilfredo Schurmann só vão assistir a Pequeno segredo em dezembro. Com 67 anos, os pais de David estão em alto-mar. São os capitães da Expedição Oriente, que busca refazer o trajeto que chineses teriam realizado em 1421.
O inglês Gavin Menzies defende uma teoria de que, 71 anos antes de Cristóvão Colombo, uma expedição comandada pelo almirante chinês Zheng He teria sido a primeira a chegar ao continente americano.
Verdade ou não, fato é que o casal, junto do filho mais novo (Wilhelm) e o neto mais velho (Emmanuel, filho de Pierre, o primogênito), refaz este percurso a bordo do veleiro Kat desde setembro de 2014. Aporta no Brasil em 10 de dezembro.
“Eles saíram do Brasil e, um mês depois, comecei a filmar Pequeno segredo”, lembra Schurmann. Voltarão exatamente um mês depois de o longa ter estreado.
Filho do meio, David não sabe qual será a reação do pai ao se ver no filme. Mas já o preparou. “Disse: ‘Pai, não fique triste, porque você foi muito presente na vida da Kat, mas o que estou mostrando é a relação dela com a Heloísa.’ O filme não faz justiça a Vilfredo, que é uma figura extremamente forte e presente (ao contrário da maneira que ele é retratado no filme). Quem o conhece, quando vê o filme, fica meio chocado”, admite.
Os Schurmann, para o público em geral, são uma família masculina, afinal, o casal Vilfredo e Heloísa iniciou sua vida como navegadores com os três filhos homens. Quando ouve algum comentário desse gênero, David dá uma risadinha e pensa: “É justamente o contrário”.
VIUVEZ Filha de uma endinheirada família carioca que perdeu tudo após a morte prematura do pai, Heloísa, adolescente, mudou-se para Nova York com a irmã e a mãe. Viúva com 38 anos, a avó de David, que ele define como uma mulher avant-garde, foi tentar vida nova na América, onde acabou se casando novamente.
Heloísa já morava havia dez anos em Nova York quando foi a Florianópolis para dar aulas de inglês. Foi lá que conheceu Vilfredo, então dono da escola de línguas. Casaram-se rapidamente e se apaixonaram pelo mar no início da década de 1970, depois de um cruzeiro pelo Caribe. Foi em abril de 1984 que o casal, mais os três filhos (David tinha dez anos na época) estreou a bordo de seu próprio barco. A primeira empreitada já era para além de ambiciosa: dar a volta ao mundo num veleiro.
Hoje, três décadas mais tarde, os Schurmann se desdobram em várias atividades. Em 2000, David foi convidado pelos pais para ficar à frente da empresa.
São quatro braços. O principal deles é a de produção audiovisual. No momento, estão em curso quatro produções, entre séries e filmes de cunho documental. O braço corporativo cuida de palestras e treinamento para executivos. Há ainda a área chamada projetos especiais, que engloba tanto a parte de logística da expedição em curso quanto produtos como livros.
Pequeno segredo é também o título do livro que Heloísa lançou em 2012 sobre sua história com Kat. A filha adotiva dos Schurmann ainda dá nome ao último braço da empresa, o Instituto Kat Schurmann. Em Santa Catarina, o projeto educacional para crianças é voltado para a preservação do meio ambiente, com ênfase no mar.
Dos filhos do casal Heloísa e Vilfredo, somente Pierre, o mais velho, desvinculou-se um pouco das atividades dos pais. Trabalha como investidor em empresas de tecnologia. O mais novo, Wilhelm, que teve carreira como windsurfista, voltou a navegar com os pais quando se aposentou do esporte.
E David, com Pequeno segredo indo ou não para o Oscar, tem muito trabalho por aqui. A Expedição Oriente tem, além dos quatro Schurmann, equipe de câmeras e fotógrafos fazendo, 24 horas por dia, todo o registro. A empreitada, dirigida por David, vai ter como fruto uma série documental com dez episódios de uma hora cada um que será lançada no primeiro semestre de 2017 pelo National Geographic.