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'13ª emenda' escancara como a escravidão nos EUA germinou um sistema de criminalização e prisão de negros

O vídeo disseminado pelas redes sociais arrebata pela repugnância: as imagens alternam cenas atuais de negros enxotados a empurrões e xingamentos de uma convenção do candidato republicano à presidência dos EUA, Donald Trump, e passagens de meados do século passado de agressões no meio da rua sob o olhar cúmplice de uma nação afrontada pelo preconceito e pela segregação racial.


Ao fundo, a voz do magnata de inclinações xenófobas exorta ataques como forma de calar o dissenso nos comícios.

A montagem com o flagrante da similaridade no tratamento discriminatório em épocas distintas está no documentário A 13ª emenda e fortalece a espinha dorsal do filme da Netflix: a população negra do país tem sido subjugada, violentada e criminalizada desde a escravidão para saciar os interesses sociais e econômicos das classes ricas – fenômeno acolhido por leis cujos efeitos camuflam, revalidam e perpetuam a opressão.

O longa examina os estágios da construção histórica do preconceito e aponta como a formulação racista contribuiu para associar os negros ao mundo do crime e, por consequência, chancelar o aprisionamento deles nas cadeias cada vez em maior quantidade, por meio de um processo de encarceramento em massa.

 

A tese de engorda dos presídios embasa a referência, no título do filme, à 13ª emenda da constituição norte-americana, por meio da qual ninguém pode ser submetido à escravidão ou ao trabalho forçado, “salvo como punição de um crime”.

 

Instituída no apagar das luzes do século 19 depois do sangrento conflito pelo fim do regime escravocrata, a medida teria sido manipulada para transformar o povo escravizado em trabalhadores servis a partir do enquadramento criminal – condição pela qual têm negada a plena cidadania.

TERRA DA LIBERDADE EM XEQUE

Baseado em censos sociais, entrevistas com ativistas, políticos, estudiosos e embalado por letras de músicos críticos à discriminação, como Nina Simone e Public Enemy, o documentário confronta a alcunha de terra da liberdade assumida pelos EUA ao constatar, no país, a existência da maior população carcerária do mundo – formada majoritariamente por afrodescendentes.

 

A mensagem contundente desembarca em uma nação assolada por uma crise racial inflamada, recentemente, por assassinatos de jovens negros por policiais brancos, reação virulenta de movimentos ativistas, discriminação artística e, de quebra, fragilidade no discurso de proteção às diferenças proveniente dos principais postulantes à Casa Branca.

A diretora do filme e ativista da causa negra na arte, Ava DuVernay, experimentou ela própria a atmosfera de discriminação quando o longa anterior, Selma: Uma luta pela igualdade, reconstituição da célebre marcha liderada pelo militante negro Martin Luther King Jr., não lhe rendeu uma cogitada indicação ao Oscar de Melhor Diretor em 2015.

 

A Academia conseguiu a proeza de só escolher brancos entre os 25 concorrentes aos postos de atuação e direção – razão pela qual as redes sociais, sob indignação, fizeram eclodir a hashtag #oscarsowhite (“Oscar tão branco”) e reforçaram o coro capaz de sensibilizar os organizadores a ampliar o número de negros, mulheres e latinos entre os jurados.

A atuação dos canais de massa para o agravamento do racismo ocupa papel de destaque no documentário e ilustra como a propagação do discurso preconceituoso alicerça a narrativa para desqualificar a cidadania afrodescendente.

 

A cineasta traça um paralelo cruel entre o conteúdo do filme O nascimento de uma nação (1915) – cujo enredo glorifica a condenação à morte de um “estuprador negro” pela organização de supremacia branca Ku Klux Klan (KKK) – e o noticiário contemporâneo no qual o retrato-falado de um criminoso sexual tem, justamente, as características físicas de um negro. A 13ª emenda mostra como, após O nascimento…, o movimento extremista se revigorou e até passou a usar a cruz em chamas, inspirado na obra.

 'SEGUNDA CLASSE' O filme também escancara como a promiscuidade entre interesses público e privado patrocinada pelo consórcio de políticos e corporações manobrou a legislação para manter os negros como cidadãos de segunda classe mesmo após a igualdade garantida pela Lei dos Direitos Civis (1964).

 

À opressão da segregação, se seguiu a associação paulatina à conduta criminosa, em especial ao tráfico de drogas, transformado por sucessivos presidentes (de Nixon a Clinton) em arqui-inimigo da nação.

As medidas adotadas por eles para “garantir a lei e a ordem” (muitas formuladas pelo Conselho de Intercâmbio Legislativo, Alec, entidade integrada por políticos e empresas) endureceram de forma exagerada a punição aos crimes e trancafiaram milhares de negros em presídios para os quais instituições da Alec prestam serviço remunerado – e onde os detentos trabalham em regime de servidão em projetos de multinacionais.

Com sensibilidade, Ava DuVernay capta o efeito do sistema sobre os negros, dentro e fora das celas. Aprisionadas, várias gerações de jovens têm as oportunidades (e as vidas) ceifadas – como Kalief Browder, levado ao suicídio, quando libertado, após ficar detido três anos sem julgamento.

 

Nas ruas, cresce a resistência de movimentos como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), nascido e consolidado como resposta aos assassinatos de negros por policiais nos dois últimos anos nos EUA – apesar do extermínio de líderes de outrora, como Luther King e Panteras Negras.

 

O documentário é candidato forte ao Oscar por mostrar o quão profundas são as feridas raciais dos EUA, permitir a comparação com mecanismos de opressão em outros países – como o Brasil – e explicitar como cada organismo age de forma sistêmica para vilipendiar a dignidade negra.

 

É um petardo contra a desfaçatez política, o desequilíbrio capitalista, a manipulação midiática, a distorção artística, a miséria humana e a hipnose social. Em uma das cenas, o filme rememora a dolorosa morte de um garoto negro desarmado e rendido por policiais. No chão, ele agoniza e repete inúmeras vezes até desfalecer: “Não consigo respirar”.

Falta ar para quem vê A 13ª emenda.
 
 

NA TELA

Produções audiovisuais recentes têm abordado o racismo

American crime (disponível na Netflix): Série de antologia narra a investigação em torno do assassinato de um casal de brancos cujo principal suspeito, mesmo sob provas frágeis, é um negro. A criminalização suplanta desvios do sistema legal e de conduta das vítimas.

Raízes (no History): Remake de produção premiada nos anos 1970, minissérie de oito episódios aborda malefícios da escravidão e a luta pela liberdade a partir da narração da vida de uma família.

 

Insecure (na HBO): Na série, duas amigas negras usam estratégias inteligentes para enfrentar atitudes racistas e misóginas. Seriado contesta e desconstroi discursos dominantes.
 
 

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