Uma dezena de artistas de Minas Gerais que estão entre os maiores criadores brasileiros ganha um retrato definitivo com o filme Do pó da terra, do fotógrafo paulista Maurício Nahas, que estreia nesta quinta, 13, no Cine Usiminas Belas Artes (uma sessão diária, às 17h30, na Sala 3).
O documentário desenha o perfil de gente como dona Isabel Mendes, a criadora de bonecas de cerâmica que se tornaram um ícone não só do artesanato do Vale do Jequitinhonha, mas da arte popular do Brasil. Ou Noemisa Batista, cujas antológicas cenas da vida rural carregam encanto indescritível. Ou Ulisses Pereira, um místico que adentra mundos fantásticos com naturalidade que assombra. E tem ainda Maria Lira Marques, cujos desenhos e máscaras integram acervo do melhor que a arte contemporânea já produziu. E eles não são as únicas estrelas do filme.
Do pó da terra é o primeiro longa do paulista Maurício Nahas. O filme talvez seja, até agora, o mais completo registro da produção cerâmica do Vale do Jequitinhonha. Não só registra as criações e processos dos artistas, como pontua, ao longo de sua narrativa, reflexões filosóficas sobre a prática.
O artesão Amaury Aparecido, já no início do filme, avisa que trabalhar com o barro é estabelecer relação com o universo. E com belas imagens o filme confirma o espanto que causa uma produção que, tendo nascido da necessidade da luta pela sobrevivência, extrapola a dimensão utilitária e se torna especulação estética sobre o mundo, a vida e a natureza.
Segundo Nahas, Do pó da terra surgiu da vontade de dar rosto a criadores que o Brasil precisa celebrar.
SOBRENATURAL “Há algo quase sobrenatural na criação desses artistas. Por mais que você, racionalmente, compreenda como surgiu a arte de Ulisses Pereira, fica sempre a curiosidade de onde veio uma expressão artística que dialoga com o surrealismo feita por um homem que nunca saiu do lugar onde nasceu”, exemplifica. A cerâmica do Jequitinhonha, na opinião do diretor, é arte com características muito próprias, que surgiu naturalmente a partir de técnicas indígenas, produto de uma cultura matriarcal.
“O Brasil é muito rico no sentido humano. Apesar da enorme desigualdade social, o brasileiro é valente e criativo. Fomos comprovar essa força numa das regiões mais sofridas do país que já foi conhecida como Vale da Miséria”, explica Nahas, observando que a região é também personagem do filme.
“Queríamos conhecer seus habitantes, principalmente os ceramistas. Pessoas que encontraram no barro o seu sustento, que fazem da arte um meio de lutar contra a pobreza. Uma gente que superou a falta de trabalho, o ambiente hostil e a seca trazida pela plantação indiscriminada do eucalipto”, acrescenta. “Toda a equipe se emocionou com o que viu e saiu transformada depois de passar 20 dias no Vale do Jequitinhonha”, observa.
Nahas trocou o estudo da medicina, quando estava no terceiro ano do curso, pela fotografia. Trabalhou inicialmente como assistente de fotógrafo. Em 1995, abriu seu próprio estúdio.
O impacto do contato direto com a produção dos artesãos do Vale do Jequitinhonha, que o diretor só conhecia de fama, fez com que o projeto do filme se ampliasse para um livro de fotos e uma exposição. O volume, homônimo ao filme, traz ensaio fotográfico em preto e branco. É outra poética, distinta da que está no filme. Nas fotos, me voltei mais para as texturas das coisas, do barro, para os olhares marcantes, as paisagens, o local onde vivem os artesãos”, conta Maurício Nahas. O livro traz o texto Impressões digitais, assinado por Fernando Machado, produtor e autor da ideia de fazer o filme. Suas anotações são semelhantes a um diário da viagem pela região.
TRECHO
“Seu Chico, vizinho de Zezinha, tem o rosto marcado por sua realidade dura e triste: ele não chegou a conhecer a mãe, Lindalva. No parto, ela passou mal, foi hospitalizada e nunca mais ninguém teve notícias. Homem trabalhador, cuida da roça, da criação e ainda sobra tempo para zelar pela comunidade. “É um veterinário sem diploma.
Nessa hora reflito: como pode uma região com uma cultura tão rica, vinda da terra e de histórias tão puras e intensas, ser batizada no passado como Vale da Miséria? Enxergo o contrário: o Vale é como uma joia rara, valiosa, que precisa ser vista, preservada e entendida como tal”
(De Fernando Machado, no livro Do pó da terra).