A cineasta Anna Muylaert, de 52 anos, tem dois filhos: José, de 20 anos, e Joaquim, o Joca, de 16. Filha rebelde na adolescência, sofreu e fez seus pais sofrerem. Assume: “Saí muito do que se esperava de mim”. Quando o papel se inverteu, ela fez diferente. Muito até, na opinião de um psicólogo, que “disse que eu exagerava, por ter sempre aceitado a vontade deles (os filhos)”.
Mãe só há uma, novo filme da diretora, chega hoje aos cinemas. O longa-metragem retorna ao tema de Que horas ela volta? (2015), mas de uma maneira diferente. Se no filme que a consagrou estava em xeque a verticalidade das relações (patroa e empregada), agora a narrativa aponta para as relações horizontais.
“A família é a primeira instância do Estado. No filme, o personagem vai achar um novo caminho, do amigo, do irmão, e não o da autoridade”, afirma Anna.
Filmado em fevereiro de 2014, no mesmo período em que finalizava Que horas ela volta?, Mãe só há uma é centrado em Pierre, jovem de classe média com um cotidiano comum entre a escola, os amigos e sua banda de rock. Certo dia, a polícia chega em sua casa, e a vida muda radicalmente. Um exame de DNA comprova que Pierre não é filho daquela que julgava ser sua mãe. A mulher é presa. O garoto se vê forçado a trocar de mãe, de casa, de escola e de nome. Passa a ser chamado de Felipe. Mas isso é só uma parte das mudanças.
“Eu queria fazer um filme sobre busca e afirmação de identidade. Se você não é nada do que achou que era, então, o que sobra?”, diz a diretora. O ponto de partida da história foi o caso Pedrinho. Levado bebê dos braços da mãe de uma maternidade de Brasília, em janeiro de 1986, o garoto foi localizado 16 anos depois, em Goiânia, vivendo com outra família e com outro nome. Um exame de DNA mostrou que, na mesma casa, também registrada como filha legítima, estava uma mulher sequestrada havia 23 anos.
Aos 16 anos, Pierre/Felipe também está em fase de descobertas. Andrógino, gosta de meninos e meninas, usa esmalte, maquia-se para as festas e sente-se bem usando vestidos.
ESTEREÓTIPOS Com a mudança para a outra família, o pai e a mãe, estereótipos do casal classe média alta, entram em choque. “Tá difícil entender como te amar”, afirma o pai do garoto. O irmão de sangue, que é tudo o que Pierre/Felipe não é, vai, a despeito das diferenças, conseguir estabelecer uma relação com ele.
O protagonista é interpretado por Naomi Nero, sobrinho do ator Alexandre Nero e escolhido depois de sucessivos testes. Até então, nunca havia feito nenhum trabalho como ator. O pai é vivido por Matheus Nachtergaele. Dani Nefussi tem dupla função no filme: a atriz, uma das fundadoras do Teatro da Vertigem (assim como Matheus), interpreta as duas mães do personagem: a de sangue e a que o roubou. Um outro papel primordial para a trama é o de Joca (Daniel Botelho), o irmão de Pierre/Felipe.
“No roteiro, eu tinha dois personagens principais: o Pierre e o Joca. Mas, na hora da montagem, fiquei com um só, pois é um filme sobre identidade, sobre sair das zonas de autoritarismo.” Para atualizar a discussão, Anna colocou em foco a discussão de gênero. “A geração atual derrubou todo tipo de rótulos. Não tem mais essa de ‘sou gay’.
Mãe só há uma foi lançado em fevereiro no Festival de Berlim. Selecionado para a mostra Panorama, recebeu o prêmio Teddy concedido pela revista alemã Männer (considerada a premiação oficial do público LGBT do evento). A premiação ocorreu um ano após Que horas ela volta? ter recebido o prêmio na seção Panorama, dado pelo público.
O novo filme foi realizado com quase um terço do orçamento do longa anterior – custou R$ 1,5 milhão, contra R$ 4 milhões de Que horas ela volta?. “Uma inspiração para este filme foi O céu sobre os ombros (2011), de Sérgio Borges. Queria fazer um filme mais barato, com uma equipe jovem, para experimentar coisas novas. Pela primeira vez trabalhei com a câmera na mão. É um filme de risco, nasceu da vontade de questionar minha identidade e minha maneira de filmar”, afirma Anna.
O longa estreia hoje no Brasil um dia após ter chegado aos cinemas franceses – já foi vendido para 15 países. No país, a repercussão de Que horas ela volta? trouxe um novo público para a obra de Anna. “O que mais aconteceu foram pessoas que ficaram encantadas por eu ter feito (as séries infantis realizadas nos anos 1990) Mundo da lua e Castelo Rá Tim Bum”, acrescenta ela, que recentemente foi convidada para integrar a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. É a primeira diretora brasileira a fazer parte da Academia que organiza o Oscar.
HOMENAGEM EM FESTIVAL
Anna Muylaert é a homenageada do 11º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, que será realizado até a próxima quarta-feira, na capital paulista. Além de uma retrospectiva de trabalhos da diretora (longas, telefilmes e séries), o evento vai exibir, pela primeira vez, o que a cineasta chama de demo filme.
“É um rascunho dos filmes que faço, tanto que fiz para todos os longas que realizei. Antes da filmagem, filmo o longa inteirinho, sozinha com os atores, numa locação”, conta ela. O festival em São Paulo vai exibir o demo filme de Que horas ela volta?, realizado durante dois dias na mesma casa que serviu de locação para a história protagonizada por Regina Casé.
Para ela, os demos servem para entender o filme e ver o que pode ser corrigido. “Foi no demo de Durval discos (2002) que percebi que o roteiro estava alongado no começo. E o de É proibido fumar (2009) foi um teste para o Paulo Miklos, pois tinham medo de colocá-lo no papel.” Por ora, Anna não tem intenção de exibir outro demo..