A edição 2016 do CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, que será oficialmente aberta hoje, quer chamar atenção para um tema especial: a preservação dos arquivos de TV. Para escancarar o assunto, promove amanhã, a partir das 19h45, na Praça Tiradentes, sessão especial de uma produção que faz parte da memória audiovisual de mais de uma geração: O vigilante rodoviário. Criado pelo diretor Ary Fernandes e pelo produtor Alfredo Palácios, foi o primeiro seriado feito no Brasil, tendo estreado na TV Tupi, em 1962. Os três episódios a serem exibidos amanhã são Diamante Gran Mongol, A história do Lobo e Aventura em Ouro Preto.
O ator paulista Carlos Miranda, intérprete do inspetor Carlos, personagem principal de O vigilante rodoviário, estará em Ouro Preto, para acompanhar a sessão. Hoje com 83 anos de idade, ele mora em Águas da Prata (SP). Nos 38 episódios das três temporadas da série, Miranda deu vida a um policial com jeito de galã, sempre acompanhando do cão Lobo, que, a bordo de uma motocicleta Harley Davidson ou de um carro Simca Chambord, lutava contra o crime nas beiradas das rodovias nacionais. Tipo idealizado pelos realizadores a partir de um sonho: criar um herói 100% brasileiro.
“Ouro Preto é uma linda cidade”, diz Carlos Miranda, que a conheceu filmando O vigilante rodoviário. Conheceu, inclusive, Dona Olímpia e se deixou fotografar ao lado da lendária contadora de histórias, que, por andar pelas ruas com trajes de época, “era a maior atração de Ouro Preto”. A vinda de Miranda a Minas Gerais, ele explica, ocorreu por causa da enorme repercussão da série. Tão rumorosa, recorda, que levou Magalhães Pinto, então governador do estado, a convidar os realizadores para fazer filmagens em cidades históricas mineiras como forma de divulgá-las.
Carlos Miranda se recorda de curiosidades em torno do projeto do diretor Ary Fernandes (que também compôs o tema musical do inspetor Carlos) de criar um herói brasileiro. Descobriu-se, por exemplo, no momento dos testes, que o cão do policial, conhecido por comerciais de móveis de aço, chamava-se King. “Na primeira série brasileira o herói ter cão com nome em inglês?, questionou um amigo. Diante do problema, alguém chamou o cachorro de Lobo. E ele, milagrosamente, olhou, ganhando então novo nome”, conta.
IMITAÇÃO
“Para fazer o inspetor Carlos, deixei por algum tempo de ir ao cinema, já que havia a mania de sempre dizer que ficávamos imitando os atores estrangeiros”, diz Miranda. “O meu inspetor Carlos não é imitação de ninguém, mesmo que alguns digam que se pareça com atuações de Elvis Presley e Rock Hudson”, afirma. Ele lembra ainda da participação no seriado de atores em início de carreira e que mais tarde se tornaram muito famosos, como Rosamaria Murtinho, Stênio Garcia, Ary Fontoura, Geraldo del Rey ou Fúlvio Stefanini, “que naquele tempo era magrinho”.
Segundo Miranda, “atores e equipe ajudaram a fazer O vigilante rodoviário pensando mais no futuro das crianças do que no cachê que recebiam”. Salário de ator de cinema, na época, era modesto, “dois salários-mínimos”. E quem queria sobreviver da profissão tinha de fazer vários filmes e teatro popular. “Havia contenção até de despesas com alimentação”, observa. Era trabalho diário, “de segunda a sábado, das 5 da manha até a tarde”, com muita preparação, já que não existia videotape (a série foi feita em película).
Fazer série de TV quando “nem se falava em programação brasileira na televisão”, conta o ator, foi uma aventura. “Os colegas diziam: vão brigar com os norte-americanos? Soava impossível meia dúzia de brasileiros enfrentarem os enlatados que chegavam ao país”, recorda, lembrando que o Brasil foi o segundo país do mundo a fazer séries de televisão (o terceiro foi o Japão).
Quando O Vigilante rodoviário foi ao ar, o campeão de audiência era Rin-Tin-Tin. A série brasileira empatou com a audiência da produção norte-americana na primeira semana e superou-a na segunda.“O sucesso deve-se ao carinho com que o Vigilante foi concebido e realizado. É série para crianças, mas com apelo cultural e educacional, mostrando boas ações e vitória do bem contra o mal. Por ser sinceramente assim, marcou muito as pessoas”, analisa.
O preço baixo dos produtos estrangeiros (e o custo alto de se fazer cinema no Brasil) fizeram com que ficasse inviável dar continuidade ao projeto de O vigilante rodoviário, mesmo que bem-sucedido. Com a crise dos estúdios e o teatro em dificuldades, “vendo possibilidade de fazer cinema na polícia”, Miranda fez concurso para ser policial militar. Atuou em comerciais e eventos institucionais da corporação e se aposentou como tenente coronel da PM de São Paulo.
O Vigilante rodoviário, desde que foi resgatado, nos anos 1970, nunca mais saiu do ar tendo sido exibido nos mais diversos canais de televisão. Atualmente, conta Carlos Miranda, está na 17ª reprise na TV Brasil.
De olho no futuro
“A Mostra de Cinema de Ouro Preto nos lembra que nossa memória audiovisual tende a desaparecer por falta de políticas públicas que cuidem deste legado que está, o tempo todo, em risco. E que a preservação do patrimônio cinematográfico é fundamental.” Palavras de Francis Vogner dos Reis, curador da Mostra Histórica do evento, explicando que, ao trabalhar com o passado e o presente do cinema brasileiro, a mostra aspira a construir um futuro para um acervo que conta a história do Brasil e da sociedade brasileira.
A 11ª edição da CineOP, que vai até a próxima segunda, prevê exibir 19 longas, sete médias e 65 curtas em três espaços de Ouro Preto (Praça Tiradentes, Cine Vila Rica e Centro de Convenções), sempre com entrada gratuita. Distribuídos nas mostras Contemporânea, Preservação, Homenagem, Histórica e Praça, os curtas têm mais três segmentos: Venturas, Mostrinha e Horizontes. O homenageado desta edição é o cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014), um dos mais importantes documentaristas do país, com exibição, às 20h30 de hoje, no Cine Vila Rica, do clássico Cabra marcado para morrer.
A mostra Histórica reúne ainda os filmes A próxima vítima, de João Batista de Andrade, Eles não usam black tie, de Leon Hirszman, Extremos do prazer, de Carlos Reichenbach; Festa, de Ugo Giorgetti, e Superoutro, de Edgar Navarro. “O que me interessa são variações de perspectivas e não só dos grandes temas políticos ou de episódios históricos emblemáticos. Serão mostrados olhares particulares do período que vai de 1976 até a nova Constituição, em 1988”, explica o curador.
Segundo ele, “os filmes da mostra Histórica não pensam o processo político em si, mas tentam entender como a sociedade viveu o momento”. O conjunto deles explicita, “de modo sensível”, muitos temas, na avaliação do curador. Das marcas deixadas pela ditadura e da luta contra ela até a aparição do novo sindicalismo, linha de frente da redemocratização, passando por crises intelectuais ou existenciais diante de um contexto conservador e tecnocrático, que funda o “Brasil pragmático que é diferente do Brasil sonhado”.
11º CINEOP
Mostra de cinema de Ouro Preto. Exibição de filmes, seminários, debates etc. De hoje a segunda-feira (27/6), em vários locais de Ouro Preto. Programação completa em www.cineop.com.br.