Daqui a um mês, o cineasta Eryk Rocha termina o bordado de uma colcha de retalhos composta por fragmentos de 130 filmes, projetos estéticos e sonhos de uma América Latina integrada e inclusiva chamada Cinema Novo. A ideia é que o documentário, que será exibido em Cannes comece sua carreira nos festivais nacionais do segundo semestre. O título do sétimo longa do realizador de cults como Rocha que voa (2002) é xará do movimento que sonhou mudar o modo de se fazer cinema, o modo de se entender o Brasil e o modo de se fazer história – tudo isso pela valorização da cultura nacional. Com depoimentos dos mais importantes diretores do movimento, o projeto busca reaver a energia de uma geração que teve no pai de Eryk, Glauber Rocha (1939-1981), um de seus expoentes mais luminosos. Na entrevista, o diretor de 38 anos fala sobre e aponta semelhanças simbólicas e governamentais entre os tempos de hoje e o Brasil dos anos 1960, no qual obras-primas como Vidas secas (1963), Terra em transe (1964) e Macunaíma (1969) foram realizadas.
Qual é a abordagem do filme em relação ao movimento cinema-novista brasileiro e quais são os diretores entrevistados?
Não é um filme historicista, para explicar o movimento. Ele é um ensaio poético de reincorporação da energia criadora do Cinema Novo, a fim de trazer o nosso país para o agora, para o presente, livrá-lo dos ranços. O desejo do filme é pesquisar o Cinema Novo como sendo uma “aventura de criação” feita por uma geração que, em plena ebulição dos anos 1960, pensava a arte como carro-chefe de uma transformação social e política do Brasil e da América Latina. Para fazer isso, o meu documentário é composto de múltiplos filmes do Cinema Novo e narrado em primeira pessoa por seus próprios autores: Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cacá Diegues, Luiz Carlos Barreto, Paulo Cesar Saraceni, Ruy Guerra, Gustavo Dahl, Walter Lima Junior, David Neves, Mário Carneiro, José Carlos Avellar, Roberto Pires, Roberto Santos, Roberto Farias, Orlando Senna, Alex Viany, Arnaldo Jabor, Olney São Paulo, Zelito Viana, Geraldo Sarno, Luís Sérgio Person e Maurice Capovilla, entre outros. Nessa perspectiva, não se trata de um filme sobre o Cinema Novo, mas com e através do caldeirão do Cinema Novo. E esse filme se desdobra também em série documental para a TV, que inclui o crítico José Carlos Avellar em um dos capítulos.
Três dos quase 130 filmes citados por você em seu novo documentário garantiram efervescência política às nossas telas no ato do golpe de 1964: Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol e Os fuzis. Não por acaso, você resgata essa trinca no momento em que o país se vê, uma vez mais, falando de golpe, de quebra democrática. Que semelhanças você enxerga entre os momentos históricos?
O documentário Cinema Novo flagra um momento de tensão histórica e de violência bem próximo do que vivemos hoje. Há uma sequência crucial nesse meu filme que aborda o golpe e, em seguida, o Ato Institucional nº 5, mostrando quanto eles afetaram o país com uma ruptura do processo democrático, num acirramento da ditadura. É da natureza da América Latina o fato de a nossa história viver de ciclos sempre marcados por golpes. A questão, antes, nos anos 1960, é que havia uma ação dos militares. Agora, quem faz a ação é o Judiciário, que se politiza, televisionado ao vivo e em cores, numa relação com a mídia. O que muitas vezes não se consegue enxergar é que, no golpe de 1964, havia, junto dos militares, uma certa classe média mais conservadora, uma ala da burguesia nacional. O golpe foi também parte da vontade política dessa classe. Agora, hoje, quem executa o interesse da burguesia é o Poder Judiciário. Precisamos, sim, de um novo ciclo para nossa política, mas ele não pode vir de uma ruptura democrática.
De que maneira o Cinema Novo modificou nossa percepção estética de Brasil?
Já se passaram cinco décadas e, apesar de muitas teorias, teses e versões, ninguém conseguiu definir o que foi (ou é) o Cinema Novo em sua inteireza. Isso só confirma a profundidade que tem o movimento e sua complexidade criadora. O Cinema Novo foi o período estética e intelectualmente mais fecundo do cinema brasileiro, movimento no qual foram consolidadas as bases de uma representação revolucionária, fundando uma nova imagem deste país para o próprio Brasil e para o mundo.
Quanto as gerações contemporâneas preservaram das invenções cinema-novistas e de que maneira o legado daquele movimento se modificou ao longo da história?
Este projeto, Cinema Novo, nasce da vontade de investigar a história cinematográfica, cultural e política do meu país em cruzamento com minhas raízes afetivas. O desejo do filme é colocar o Cinema Novo em pleno movimento, sempre com o intuito de trazer o movimento para o presente, sem mistificações, cristalizações ou estigmas. Quero romper com o saudosismo e com essa ideia hermética de passado ligado àquelas imagens. Quero recolocar o Cinema Novo como um estado de espírito, como um gesto de invenção e coragem, e como um “movimento de futuro” que dialoga visceralmente com o Brasil e o cinema contemporâneo.
De que maneira o seu mergulho nessas imagens históricas do Cinema Novo modificou sua forma de olhar, sua forma de fazer cinema?
Este novo documentário é composto de uma multidão de imagens, sobretudo imagens dos anos 1960, uma época na qual aqueles diretores, olhando para dentro deste país, interagindo com inquietações de seu próprio tempo, construíram uma representação de Brasil para o mundo. No fundo, o Cinema Novo, com seus filmes tão diversos entre si, pode ser entendido como um grande documentário sobre o Brasil, um testemunho poético da formação de um povo. Revisitar esse processo, mais do que um privilégio, é um caminho para eu entender de onde venho.
Quando você planeja voltar à ficção, terreno que visitou em 2010 com Transeunte?
Por conta do intenso processo de montagem do documentário Cinema Novo e do quanto o filme me absorveu, tive que adiar a filmagem de Breves miragens de sol, meu novo longa de ficção. Transferi o trabalho para o segundo semestre deste ano. A partir de junho iniciamos a pré-produção. O filme é uma trama sobre a realidade da noite do Rio de Janeiro, tendo a saga de um taxista como sua camada ficcional. (Estadão Conteudo)