Pense na imagem clichê das avós que fazem tudo pelos netos.
A julgar pelo que o pai lhe contava, Marianne Hertz era uma mulher fatal. Descrita também como uma devoradora de homens que, no auge da juventude, entregou os filhos em um orfanato e partiu para a África do Sul. Sem explicações. Isso tornou-se o mistério da vida do jovem realizador de 36 anos.
Se até aqui a história real já tinha tudo para inspirar uma ficção dramática, quando Fassaert completou 30 anos, um novo episódio apimentou mais o caso. Tom recebeu da avó uma carta com o convite para conhecê-la.
Não tão grande como ocorre em São Paulo, mas tão relevante quanto, o evento dedicado aos filmes de não ficção desembarca a partir de hoje na tela do Cine 104, em Belo Horizonte.
Um caso de família é um dos destaques da programação, que fica em cartaz até domingo. É o quinto ano consecutivo que a edição itinerante faz sua parada mineira.
A julgar pelo perfil dos longas selecionados, é bem provável que seja chance única de ver abordagens inéditas como esta sobre família, o nazismo, o futebol e até a relação entre o escritor Gabriel García Márquez e sua literatura. “Os documentários selecionados têm em comum o ineditismo, sejam brasileiros ou internacionais. Revelam a diversidade estilística”, afirma o crítico Amir Labaki, fundador do festival.
É essa característica, distante da lógica do cinema comercial, que faz do É tudo verdade queridinho de quem acompanha a cena do gênero no mundo todo.
Criado há 21 anos, é marca do É tudo verdade privilegiar o trabalho do autor. O critério implica destaque de um amplo leque de estratégias narrativas, convencionais ou não, que têm em comum aproximações originais de recortes da realidade. Casos como o de Fassaert.
Das 22 produções que participaram da competitiva em São Paulo no início do mês, oito foram escolhidas para percorrer o Brasil. Além de Belo Horizonte, o É tudo verdade teve miniedições em Santos, Recife e Brasília.
O futebol, de Sergio Oksman, e Um caso de família, de Tom Fassaert, foram respectivamente vencedores das competitivas nacional e internacional. “São ambos filmes-processos, de pesquisas familiares, que comprovam o acaso como o mais imprevisível dos roteiristas”, comenta Labaki.
Mas falar de família não foi temática no É tudo verdade 2016. Também fazem parte da programação narrativas sobre guerra, história, literatura, jornalismo, saúde e artes plásticas. Amir Labaki destaca Os campeões de Hitler, de Jean-Christopher Rosé, como um dos mais tradicionais.
“É um documentário feito para a TV, exibido em première mundial, todo estruturado a partir de um impressionante material de arquivo e uma narração em off”, conta.
Entre os oito longas selecionados para a itinerância, três são brasileiros. Lampião da esquina, de Lívia Perez, conta a história do jornal O Lampião, criado em 1978.
O diretor Vladimir Carvalho participou da competitiva nacional com Cícero Dias, o compadre de Picasso. O longa recupera memórias sobre a convivência do pintor modernista pernambucano Cícero Dias (1907-2003) com o espanhol Pablo Picasso na Paris dos anos 1930.
CANNES
São filmes que reforçam a boa onda dos documentários nacionais. Como Amir Labaki observa, nos anos 2000, produções brasileiras venceram alguns dos principais festivais de documentários do mundo. Santiago, de João Moreira Salles, conquistou o Cinèma du Rèel, e Estamira, de Marcos Prado, foi o melhor em Marseille.
“Mais recentemente, houve forte presença brasileira na competição do IDFA do ano passado, Marcos Prado teve seu novo documentário, Curumim, selecionado para o Panorama Dok do Festival de Berlim, em fevereiro, e temos agora Eryk (Rocha) em Cannes.”
Com Cinema novo, Erik concorre ao recém-criado prêmio L’Oeil d’or (Olho de ouro) no Festival de Cannes. “Apenas recentemente Cannes abriu-se mais para o documentário”, explica Labaki. Em 2016, ele será um dos participantes do júri que vai escolher o melhor filme do gênero.
“Participar de júris nos dá sempre o privilégio de estimular o confronto de ideias e de sensibilidades. Gostaria de ser surpreendido o mais possível pelos documentários lançados em Cannes”, diz.
Em 69 edições, apenas duas vezes documentários venceram o prêmio principal do evento francês, marcado para o período de 11 a 22 de maio. Para Labaki, dentro do limitado espaço reservado ao gênero, a presença de longas nacionais é importante e crescente. Há cinco anos, Cannes celebrou a restauração de Cabra marcado pra morrer, de Eduardo Coutinho.
FUTEBOL ABRE PROGRAMAÇÃO
Não há revelações sobre jogadores na concentração ou sobre derrotas acachapantes no campo em O futebol, apesar da ambientação na Copa do Mundo de 2014.
Carregando o título de melhor documentário atribuído pelo júri do festival É tudo verdade, o longa de Sérgio Oksman sugere, logo nos primeiros segundos, que o foco do filme reside na relação entre um filho – o próprio diretor, um paulista radicado na Espanha – e o seu pai.
Ambos não se viam há 20 anos e decidiram assistir juntos ao espetáculo esportivo que mobilizou o país há dois anos. O longa abre hoje a programação mineira do festival.
“Enquanto o mundo inteiro estava olhando para o evento, eu quis capturar o tédio, duas pessoas perdendo tempo juntas”, explica o cineasta.
Durante pouco mais de uma hora de projeção, o espectador é colocado, em vários momentos, no banco de trás do carro de Simão (o pai), de onde testemunha as conversas entre os “estranhos” enquanto ambos percorrem as ruas de São Paulo.
Os diálogos são recheados de frases triviais. “Por que você faz isso com a boca?”, pergunta Oksman, referindo-se ao barulho constante que o pai produz. “Não percebo. Quem tem tique não percebe”, é a resposta. “Por que a documentação do carro está irregular.?” “Sei lá, porque sim.”
A interação também é frequentemente intercalada por silêncios constrangedores, pequenos conflitos e frases furtivas. Poucas dicas são fornecidas ao espectador quanto aos motivos que levaram ao distanciamento paternal de duas décadas.
“São dois estranhos que, no passado, tinham uma memória afetiva com o futebol”, define o cineasta. “Mas não fui para o Brasil fazer um reajuste de contas com meu pai, nem criar um clima de nostalgia. De certa forma, o filme registra uma cidade num momento estranho, como eu a percebo: um lugar desértico, cinza, numa situação de eclipse.”
Embora sempre estrategicamente posicionada, a câmera captura momentos que parecem genuínos. As reações e os diálogos não foram ensaiados, garante o diretor. Na “trama”, a passagem temporal é pontuada por letreiros que identificam a partida que estava em curso no dia da gravação.
O futebol, no entanto, não é “uma metáfora de nada”, como Oksman faz questão de lembrar. Ele até faz uma analogia, mas não para explicar o tema, e sim a estrutura do filme: “O futebol é um exemplo de metodologia. Há regras definidas, mas você não sabe o que vai ocorrer dentro do campo. Com o filme, é a mesma coisa”.
(Fabiano Ristow/Agência Globo)
É TUDO VERDADE EM BH
Hoje (28)
20h40 – O futebol, de Sérgio Oksman
Sexta (29)
17h – Os campeões de Hitler, de Jean-Christophe Rosé
19h00 – Nuts!, de Penny Lane
20h40 – Cícero Dias, o compadre de Picasso, de Vladimir Carvalho
Sábado (30)
17h – Gabo: a criação de Gabriel García Márquez, de Justin Webster
19h – Lampião da esquina, de Lívia Perez
20h40 – Um caso de família, de Tom Fassaert
Domingo(1º)
17h – Atentados: as faces do terror, de Stéphane Bentura
19h – Gabo: a criação de Gabriel García Márquez, de Justin Webster
20h40 – O futebol, de Sergio Oksman
Cine 104. Praça Ruy Barbosa, 104,
Centro, (31) 3222-6457.