Em dezembro de 1974, o cineasta e sua equipe seguiram para Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, onde permaneceram por três meses – inclusive no dia de Natal, no réveillon e no carnaval de 1975. Todas as cenas foram rodadas na cidade e seus arredores. “Não há nada filmado fora de lá. Não teria sentido contar a história de Xica em estúdio ou fora de Diamantina. O bacana é que a cidade se envolveu demais. Havia sempre muita gente assistindo e colaborando conosco. Muitos atores secundários e todos os figurantes eram locais”, recorda Cacá.
Além de trabalhar, a equipe curtiu as atrações do antigo Arraial do Tijuco. Zezé Motta, que se consagrou ao interpretar Xica, lembra com carinho aqueles tempos. “Ainda hoje, as pessoas comentam que existe a Diamantina de antes e de depois do filme. Tivemos folga no carnaval, Natal e ano-novo para poder voltar ao Rio, mas boa parte da equipe ficou e aproveitou os festejos com os moradores da cidade. Para mim, foi fundamental permanecer 90 dias lá. Era muito dispersa, foi importantíssimo para a composição da personagem respirar a Xica 24 horas por dia”, comenta Zezé. O papel deu à atriz vários prêmios, entre eles, o Candango, no Festival de Brasília; o Coruja de Ouro, concedido pelo Instituto Nacional de Cinema (INC); e até um Coelhinho, da revista Playboy, pela nudez em cena.
Já pensando no carnaval, Zezé sugeriu a Elke Maravilha – que interpretou Hortência, inimiga de Xica – levar suas perucas e roupas coloridas para a cidade. “Duas senhorinhas de Diamantina bateram no Hotel Tijuco, onde a gente estava hospedada, e me perguntaram se tinha alguma roupa para emprestar para os maridos, pois eles estavam doidos para se fantasiar de Elke no carnaval. Um era reitor da universidade e o outro, professor. Gostei tanto da ideia que fiz questão de arrumá-los”, diverte-se Elke Maravilha.
Além do affair com o ator Altair Lima, seu par no filme, Elke namorou um rapaz da cidade. “Um monte de gente me paquerava, tipo fazendeiros e empresários. Mas me apaixonei mesmo foi pelo cobrador de ônibus. A gente ia aos botecos, ao famoso Beco do Mota, nadava na cachoeira de Sentinela. Diamantina é uma das cidades mais especiais de Minas. O clima nos bastidores era fantástico, isso foi transferido para a telona. Ainda hoje, o filme é superatual”, afirma.
Outro parceiro de “aventuras” da atriz era João Felício dos Santos. Autor do romance que inspirou o filme de Cacá Diegues, ele acabou fazendo uma ponta como o pároco. Cantando, marchando e até procurando assombração, a dupla percorria as capistranas – pedras típicas do calçamento de Diamantina. “Nunca vimos nenhum fantasma, nem a Xica”, lamenta Elke.
Stepan Nercessian tinha 22 anos quando filmou em Diamantina. O ator, que interpretou José, filho do sargento-mor vivido por Rodolfo Arena, impressionou-se com o fato de pessoas de todas as idades se integrarem à produção. “A população se envolveu bastante, porque a gente estava contando a história dali. E foi ficando algo natural: caracterizado com roupas de época, o elenco passava no meio das casas e dos carros. Era como se o filme e Diamantina fossem uma coisa só. Nunca participei de algo tão mágico e coletivo em minha carreira”, salienta.
Stepan ressalta o trabalho do produtor Jarbas Barbosa, irmão de Chacrinha. “Muito ousado, ele fez a façanha de levar aquela multidão para Diamantina, conseguiu objetos históricos para as cenas, alugou casas, inclusive a da própria Xica. Até a fiação elétrica dos postes o Jarbas conseguiu esconder”, elogia. Outra marca do filme foi a trilha sonora. Jorge Ben Jor compôs o tema a partir de um bilhete de Cacá, com a sinopse.
NAUFRÁGIO Houve apenas um episódio traumático no set, sobretudo para Zezé Motta. O barco de Xica afundou. Com pânico de água, a atriz chegou a pensar no pior. “Como não sabia nadar, achei que não ia dar conta. A sorte foram as roupas, bem pesadas. Emergi, mas bebi muita água e ainda peguei infecção por conta de uma bactéria. Tive de me tratar durante um ano. Tirando isso, foi só alegria. Aquele filme foi um marco na minha vida e na minha carreira. Até hoje as pessoas me chamam de Xica”, conta.
Cacá Diegues se impressionou com a relação dos diamantinenses com a ex-escrava. “Para uma parte minoritária da população local, Xica era uma perdida que envergonhava a cidade. Curiosamente, a outra parte, que a amava, muito mais gente, identificava-se também com Juscelino Kubitschek. Esse filme foi um dos mais prazerosos de fazer. Ele se tornou meu maior sucesso de bilheteria no Brasil. Nunca vou me esquecer da beleza e do bom astral da cidade”, destaca.
SET Em 1965, uma trupe de cinema chegou pela primeira vez a Diamantina. Lá foi rodado A hora e a vez de Augusto Matraga, do diretor Roberto Santos. No entanto, elenco e produção não se envolveram tanto com a cidade como ocorreu com Xica da Silva, lembra o jornalista Américo Antunes. A equipe de Cacá Diegues se hospedou no Hotel Tijuco, ao lado de sua casa, e o jovem diamantinense participava das festas promovidas por artistas e técnicos.
“Eles quase sempre jantavam no restaurante do hotel, ficavam lá conversando e bebendo. Quem chegava acabava se enturmando. Foi uma novidade ver uma turma de artistas tão animados e liberais fazer aquela festa danada. Não havia separação entre ator e população, ao contrário das gravações de novelas e filmes de hoje”, analisa.
Em 1975, o industriário Antônio Celso Savassi passava o carnaval na cidade. Além dos blocos na rua, a folia era realizada nos clubes – um deles, bem tradicional, não permitia a entrada de negros. Antônio Celso entrou ali de mãos dadas com as 15 mucamas de Xica na telona. “Foi um rebuliço. Mães das meninas de Diamantina desaprovaram a nossa atitude, algumas até foram embora. Foi surreal, elas ficaram realmente indignadas. A gente nem ligou, pois até sobrou espaço lá no clube pra pularmos carnaval”, revela.
EXUMAÇÃO
Restos mortais exumados na Igreja de São Francisco de Assis, em Diamantina, podem ser de Chica da Silva. No fim do ano passado, a roteirista paranaense Rosi Young, que desenvolve o projeto do documentário A rainha das Américas: A verdadeira história de Chica da Silva, com lançamento previsto para 2017, levou à cidade o casal Anthony e Catyana Falsetti, especialistas em medicina forense. “Só havia uma negra, sepultada há 220 anos na igreja, data que coincide com o período da morte da Chica. O material analisado é de uma negra de 220 anos. Como renda francesa cara foi encontrada com a ossada, está praticamente certo que se trata dela”, afirma Rosi. Segundo ela, as análises trarão informações importantes como altura e peso. Além disso, mapeamento genético pode indicar antepassados africanos de Chica da Silva.