O brasileiro 'O menino e o mundo' enfrenta hoje o favorito 'Divertida mente' no Oscar

O diretor Alê Abreu relembra como seu filme foi inspirado por uma música de Milton Nascimento e fala de sua paixão pelo Clube da Esquina

por Carolina Braga 28/02/2016 06:00
Divulgação
Cena de 'O menino e o mundo' que enfrenta hoje o favorito 'Divertida mente' no Oscar (foto: Divulgação )
Hoje é o dia em que o menino enfrenta o mundo hollywoodiano. O longa-metragem O menino e o mundo, dirigido pelo brasileiro Alê Abreu, disputa o Oscar de melhor filme de animação. O vencedor será conhecido hoje. O menino de Alê não tem a força comercial do favorito, Divertida mente, de Pete Docter e Ronnie Del Carmen. Mas chega ao Dolby Theatre, em Los Angeles, com importante papel já cumprido: chamou a atenção de uma indústria padronizada, mas que busca estéticas diferentes.

O brasileiro diz que não esperava estar no Oscar. Uma vez lá, nunca deixou de confiar na força de seu menino. A vitória na categoria independente do Annie Awards – o Oscar da animação – confirmou sua relevância. “Realmente não sei o que dizer. É um momento importante para a animação brasileira”, discursou, com o troféu em mãos. É essa a grande certeza.

“Este momento já está meio repetitivo”, avalia, em entrevista por telefone ao Estado de Minas. A voz desaparece de vez em quando. Segundo ele, um sinal do cansaço de quem anda falando muito. “Acho que a última coisa nova, algo que rememorei sobre o processo do filme foi a música do Milton (Nascimento). Foi o começo de tudo, e outro dia fui ouvir novamente”, conta.
Foi graças a Canto latino,  canção de Milton Nascimento e Ruy Guerra, que o menino nasceu. Diz a letra: “Pra viver nesse chão duro/ Tem de dar fora o fulano/ Apodrecer o maduro/ Pois esse canto latino/ Canto pra americano/ E se morre vai menino”. Desses versos surgiu a vontade de fazer um filme sobre a canção de protesto na América Latina. O desejo se traduziu em um simpático – mas melancólico – personagem sem medo de desbravar.

Ao lado do colombiano O abraço da serpente, de Ciro Guerra, Alê Abreu compõe a chamada cota sul-americana do Oscar. Para ele, estar lá é apenas uma bem-vinda e paradoxal consequência. A ousadia temática e de linguagem de O menino e o mundo faz dele o “diferentão” entre os cinco que concorrem hoje à estatueta de melhor animação. “Muito mais que representar a América Latina, é um outro tipo de animação. Fico feliz por ser um filme que signifique tudo isso”, afirma.

SIGNIFICADO
Alê Abreu tinha 12 anos quando fez o primeiro curso na área de animação. Nunca mais parou. Foi estagiário de Mauricio de Sousa e cursou publicidade e propaganda. Conhece os mecanismos da indústria do entretenimento. Escolheu ser independente sem virar as costas para o mercado.

“Não tenho nada contra (o mercado). Nunca pensei muito nisso, para ser sincero”, confessa. Alê diz que, quando começa a fazer um filme, deixa que a obra imponha suas necessidades. Em O menino e o mundo, misturou técnicas, subverteu nosso idioma, criticou o capitalismo e até mesmo a indústria que o Oscar representa. Nada foi para a tela gratuitamente.
Ele admite que as imagens coloridas e lúdicas de O menino e o mundo escondem muitos segredos. Por exemplo, a cidade grande que o menino visita não é São Paulo ou Rio de Janeiro nem Tóquio ou Nova York. É o desenho do gráfico da distribuição de renda nos países sul-americanos feito por Darcy Ribeiro no livro O povo brasileiro. “Aquela cidade é exatamente o formato do gráfico. Coloquei no computador e desenhei em cima”, revela.

O cineasta considera simbólico o conjunto de indicados a melhor longa de animação neste ano. Além de O menino e o mundo, Anomalisa (2014), de Charlie Kaufman, e o japonês Quando estou com Marnie (2014) são sinais de que os próprios profissionais estão querendo ver outras coisas. Para Abreu, uma das grandes armadilhas de seu ofício é tentar corresponder ao desejo do outro. “Não faz o menor sentido. Tem que fazer a coisa com sinceridade. O que dá vontade.”
Aos 44 anos, o diretor é hoje uma referência entre os animadores brasileiros. Está seguro de que ser um cineasta de animação no Brasil não é repetir estéticas de produções já reconhecidas internacionalmente. É encontrar o próprio caminho. Claro que não é simples.

Afp
O diretor brasileiro Alê Abreu prepara novo longa, com trama em torno do conflito árabe-israelense (foto: Afp)
Até agora, Abreu dirigiu, escreveu e produziu os próprios projetos. Se há um desejo dele com a projeção alcançada no Oscar, é poder abrir mão de ser também o produtor. “Não dá para seguir sem ter alguém olhando por mim. Não consigo me desdobrar mais”, diz. Na verdade, ele não quer.

Sabendo do próprio limite, o diretor partiu em busca de parceiros. Durante um jantar em São Paulo, depois de um contato no festival de Annecy, na França, reconheceu nos também diretores Luiz Bolognesi e Laís Bodansky possíveis parceiros. Agora a Buriti Filmes (do casal) e a Filme de Papel (de Abreu) são associadas. Dois novos projetos estão no forno.

Viajantes do bosque encantado é a nova menina dos olhos de Alê Abreu. O conflito entre Palestina e Israel é inspiração para uma história sobre amizade. Duas criaturas de países inimigos são obrigadas a entrar em um acordo para o bem comum. O roteiro do filme está pronto. Entra agora na fase do esboço de animação, chamada animatic. Imortais, com roteiro de Bolognesi, encontra-se em fase mais embrionária.

E já que a música funciona para Alê Abreu como uma bússola, Viajantes tem tudo para ter um quê psicodélico. “Estou recuperando esse estilo dos anos 70, o rock psicodélico. Está saindo uma coisa bem diferente.”

Tão fã que veio a BH “só olhar”

Minas é mítica para Alê Abreu. Quando andou por aqui pela primeira vez, ficou hipnotizado pelas paisagens da região de São Tomé das Letras, no Sul do estado. Voltava de uma cachoeira e, naquele caminho, nasceu Espantalho (1998), o segundo curta de sua carreira.

Até estrear no formato de longa, com Garoto cósmico (2007), viveu uma fase de pegar estrada. As vozes de Bituca, Lô Borges e companhia dominavam o alto-falante.

“Sou apaixonado pelo Clube da Esquina. A ponto de pegar um avião, do nada, descer em Belo Horizonte e ir andando até o prédio onde moraram o Lô (Borges), o Márcio (Borges) e o Milton (Nascimento), só para ficar olhando”, conta, com certa nostalgia no tom de voz.

O diretor – na época em início de carreira – explorou a galeria instalada no piso térreo do Edifício Levy. Seguiu a pé para Santa Tereza. Queria ver com os próprios olhos a placa instalada na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, onde vivia a família Borges. Alê Abreu nasceu em São Paulo, mas parece ter alma mineira.

Discreto, estava recluso em São Bento do Sapucaí, na fronteira de Minas com São Paulo, região da Serra da Mantiqueira, quando viu pelo YouTube seu menino conquistar um lugar no Oscar. Os últimos dois anos haviam sido dedicados a ele. Passou por países como Canadá, Estados Unidos, França, Israel, Dinamarca, Espanha, Grécia, Ucrânia e muitos outros, divulgando o filme. Quando deu o ciclo por finalizado e se preparava para jogar as energias em Viajantes do bosque encantado, o próximo longa, foi surpreendido pela indicação. Se o menino vencer hoje a disputa de gente grande, deixará um país inteiro coruja.

Prole completa

Confira a filmografia do diretor


CURTAS

» Sírius (1993)
Um menino perambula pelas ruas da cidade na noite de Natal.

» Espantalho (1998)
Uma garota se apaixona por um espantalho.

» Passo (2007)
Experimentação de linguagem sem
roteiro predefinido.

» Vivi Viravento (2009)
Vivi é uma garotinha curiosa que vive em uma infinita busca por Viravento, lugar secreto revelado por sua avó Rosa Rara, famosa escritora.

LONGAS


» Garoto cósmico (2007)
Ficção científica com protagonistas vinculados ao universo do circo e das brincadeiras de criança

» O menino e o mundo (2013)
Garoto sai em busca do pai e se depara com diversos perigos e aventuras

“Espero ser para o mundo a sinceridade e a honestidade que consegui nesse menino. É o melhor que posso dar. Sou sincero com o que tenho a dizer, com o que sinto”

“Sou apaixonado pelo Clube da Esquina. A ponto de pegar um avião, do nada, descer em Belo Horizonte e ir andando até o prédio onde moraram o Lô (Borges), o Márcio (Borges) e o Milton (Nascimento), só para ficar olhando”

MAIS SOBRE CINEMA