— Olhe, se você fosse menos antipática, agora que estão em evidência as caras incomuns, poderia até ser modelo.
— Não me vejo em uma passarela. Queria ser chefe de penitenciária, cercada de garotas todo santo dia.
— Que heavy você é, Juana!
— Sou autêntica.
O que Juana (Rossy de Palma) diz a Kika (Verónica Forqué) não é só autoexaltação. Autenticidade é marca das personagens de Pedro Almodóvar, sejam elas secundárias, como a empregada doméstica que sonha com o mundo das presidiárias, ou protagonistas, como a patroa Kika (1993), que rendeu um Prêmio Goya a Verónica Forqué. Ainda na mesma trama, há personas marcantes como Amparo (Anabel Alonso), melhor amiga traiçoeira, porém devotada, e Andrea Caracortada (Victoria Abril), símbolo fashionista do pessimismo noventista, com figurinos assinados por Jean Paul Gaultier. Em sua maioria mulheres, as criações do cineasta espanhol sustentam, há 36 anos, universo ficcional com marca própria.
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A partir da próxima terça-feira, 1º, a obra de Almodóvar entra em cartaz em Belo Horizonte na íntegra, com entrada franca, na mostra El deseo – O apaixonante cinema de Pedro Almodóvar, que segue até 17 de abril. Além de exibir todas as produções do autor desde sua estreia em longas, com Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (1980), a seleção traz obras que serviram ao espanhol como inspiração ou referência.
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A projeção da cinematografia na íntegra ainda funciona como plataforma para a contemplação dos diferentes caminhos tomados pelo realizador. “Almodóvar se preocupa em contar uma boa história, não se importa com a forma como vai contar. Tem a única preocupação de falar sobre pessoas”, diz Lira Gomes.
FASES Para o crítico, a filmografia de Almodóvar pode ser agrupada em pelo menos quatro fases. A primeira se situa no início dos anos 1980, quando o jovem agitador da “movida madrileña”, que gravava curtas amadores em super 8, abandona o emprego numa companhia telefônica para se dedicar às produções que lhe enchiam a cabeça. O primeiro Almodóvar, segundo Lira Gomes, nasce com o début em Pepi... e vai até A lei do desejo (1987). “É uma fase mais louca, de desbunde. Nas histórias amalucadas, percebe-se um cineasta jovem, disposto a contar algo novo.”
O segundo momento na carreira é definido a partir de Mulheres à beira de um ataque de nervos, indicado ao Oscar de filme estrangeiro. “Ali, ocorre o primeiro sucesso comercial de Almodóvar. Seus filmes passam a dialogar com um público amplo, global, não mais restrito a festivais e mostras”, aponta o curador. A necessidade de “fazer filmes que não se restrinjam a um gueto”, ou seja, comunicar-se com os espectadores conquistados a partir de Mulheres..., leva ao apelo humanizado de Ata-me! (1990) e Kika.A delicadeza soturna de A flor do meu segredo (1995) inaugura o período de solidez para o cineasta. Consagrado mundialmente como autor, Almodóvar entra na “fase madura”, segundo Lira Gomes. “Ele se torna um realizador que sabe exatamente o que quer. Faz parceria com o diretor de fotografia brasileiro Affonso Beato e dá uma apaziguada nas cores, que deixam de ser tão chocantes. Elas continuam presentes, mas de forma mais suave.”
Com estilos praticamente opostos, A pele que habito (2011) e Amantes passageiros (2013) formam, na concepção do crítico, a quarta e atual fase de Almodóvar, agora autorreferente. “É um momento de experimentação dele como realizador. Ele mesmo anunciou A pele que habito como um filme de terror, gênero que não experimentara. Já Os amantes passageiros retoma as comédias do começo da carreira.”
Amores duradourosCom trabalho que se estende por quatro décadas, Almodóvar nem sempre é um cineasta fácil de se conferir nas salas mineiras. A chance de ver ou rever suas produções na telona é, para parte dos fãs, oportunidade de reconectar-se ao passado. “O primeiro filme dele que vi no cinema foi Carne trêmula, aos 17 anos. Saí de lá passado”, diz o cantor Marcelo Veronez.
Espectador fiel há quase 20 anos, ele faz questão da experiência de desfrutar dos títulos do espanhol na sala escura. “Gosto do som do cinema, da reação coletiva, da imagem enorme. Faz muita diferença para o cinema do Almodóvar. Fica mais gostoso ainda quando assistido com muita gente”, afirma.
Aos ouvidos e olhos iniciados, a influência do autor de Volver (2006) é perceptível no trabalho de Veronez sobre o palco. Em sua atual série de shows, com repertório em constante mutação, o artista mineiro já interpretou, por duas vezes, Resistiré – faixa do Dúo Dinámico que encerra Ata-me! – e vai além. “A forma de construção dos filmes, os roteiros emaranhados que você decifra através das referências que ele lhe dá. Gosto de usar esse modelo para construir minhas obras musicais também”, afirma o cantor.ESPETÁCULO Em 2009, na primeira edição do Festival de Performance de BH, Marcelo Veronez apresentou espetáculo inteiramente dedicado ao universo do cineasta espanhol. “Tinha coisas das trilhas sonoras dos filmes dele e músicas do trabalho dele com o (artista plástico espanhol) Fabio McNamara, do início dos anos 1980. Uns punk pop, tipo Voy a ser mamá e Gran ganga.”
Nesta mesma época, o estudante de design Leonardo Amaral descobria o universo do cineasta espanhol. “Lembro-me de que uns amigos me convidaram para assistir a Volver e me encantei com o filme”, conta. Apesar de admirador da plasticidade do cinema de Almodóvar, o universitário aponta a abordagem sobre o feminino como o traço mais fascinante da obra dele. “Vejo liberdade sexual em muitas de suas personagens. Mulheres poderosas e donas de seus destinos”, afirma.A forma direta e quente de tratar desse universo de tabus é como o cineasta cativa lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transexuais, acredita Amaral. “Apesar de não restringir o alcance dos filmes, esse tipo de perfil das personagens pode ter mais apelo com o público LGBT, que também tem a sexualidade discutida e debatida frente toda a sociedade”, opina.
Para Veronez, os filmes de Almodóvar são infalíveis por contar “histórias possíveis”, em que as situações absurdas são apenas extensões do cotidiano. “As personagens são verdadeiras. É por isso que a gente as acha exageradas”, avalia.
BONS HÁBITOSMineiro de Coronel Fabriciano, Breno Lira Gomes vivia em Belo Horizonte quando se apaixonou pela obra de Pedro Almodóvar. Atualmente morando no Rio de Janeiro, o crítico de cinema ainda lembra como a capital mineira parece nutrir um apego especial pelo cineasta espanhol. "Trabalhei em uma locadora de vídeo em BH e os filmes dele nunca ficavam na loja, estavam sempre alugados."
"O público belo-horizontino é reconhecidamente exigente. Mas quando gosta de alguém, é verdadeiro", diz o curador da mostra El deseo, que recorda-se de frequentar sessões disputadíssimas dos filmes do espanhol nas salas da cidade, ao fim dos anos 1990. "O primeiro Almodóvar que vi no cinema foi em BH. A sessão de estreia de Tudo sobre minha mãe estava lotada e, semanas antes, já havia um burburinho antecipando o lançamento num circuito à época formado por Belas Artes, Usina e Cineclube Savassi", ele conta.
Daquela exibição mineira do filme de 1999 surgiu o embrião do projeto dedicado ao cineasta, que agora ocupa o Sesc Palladium. "Já conhecia De salto alto (1991) por ter assistido em VHS, mas foi depois de ver Tudo sobre minha mãe na tela grande que eu decidi correr atrás do Almodóvar, conhecer tudo sobre o trabalho dele", relata Breno.
A transformação do então estudante de jornalismo em aficcionado pelo cineasta levou à iniciativa, em 2011, de reunir todos os longas assinados pelo espanhol. A mostra estreou no Rio de Janeiro e, mais tarde, ganhou adesão da pesquisadora argentina Silvia Oroz, especialista em melodrama. Há quase cinco anos na estrada, foi sucesso de público também em Brasília e Curitiba. Na capital federal, no ano passado, cada sessão tinha entre 80 e 100 espectadores, segundo o idealizador.