Não é o caso, aqui, de comparar um com o outro – ainda que Tarantino, em mais de uma entrevista, tenha falado da vontade de se igualar a Allen. Mas não há como negar que o cineasta mais novo é o único que chega próximo a ele como diretor cultuado. Talvez por ser bem menos prolífico que Allen – que lança um longa-metragem por ano –, Tarantino consegue mobilizar uma legião de fãs a cada novo lançamento.
Depois de uma semana de pré-estreias diárias, Os oito odiados entra em cartaz hoje em 334 salas no Brasil. É a maior estreia de um filme do diretor no país. Circuito bem superior ao de seu filme anterior: Django livre estreou em janeiro de 2013 em 194 salas.
No mundo, o primeiro faroeste de Tarantino é também sua melhor bilheteria: Django arrecadou US$ 425 milhões. Espera-se algo parecido de Os oito odiados, segunda incursão do cineasta no gênero. Os prêmios que porventura o filme conquistar neste domingo (está indicado a três Globos de Ouro) e algumas indicações ao Oscar, que serão anunciadas na próxima quinta-feira, podem esquentar sua bilheteria – nos EUA, até o último domingo, havia atingido a casa dos US$ 29 milhões.
O mote do longa-metragem é bem simples. Alguns anos após a Guerra Civil Americana, grupo de pessoas se encontra preso num refúgio no meio do estado do Wyoming. Uma nevasca os encerra ali. O caçador de recompensas John Ruth (Kurt Russell) está a caminho de Red Rock para entregar sua prisioneira, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh). Durante a diligência, encontra-se com um colega de profissão, o ex-soldado Marquis Warren (Samuel L. Jackson).
Ruth aceita levar Warren por uma única razão: ele guarda no peito uma carta escrita pelo presidente Abraham Lincoln. Junta-se ao improvável grupo outra vítima da nevasca, o confederado Chris Mannix (Walton Goggins), racista de carteirinha que se diz o novo xerife de Red Rock.
Moral
Ao chegar ao refúgio, eles se deparam com um cenário incomum. A proprietária, Minnie (Dana Gourrier), está viajando.
Ao contrário dos filmes anteriores, nesse não há sequer um personagem que se aproxime da figura de um herói. Tampouco há senso de moral, e todos eles têm seus próprios esqueletos no armário, é o que a narrativa vai, em capítulos, descortinando. Os oito odiados é um western como Django, mas traz muito dos filmes anteriores de Tarantino: tem um confronto num único ambiente como Cães de aluguel (1992) e um flashback esclarecedor como Pulp fiction: Tempo de violência. No entanto, carrega um trunfo inédito na carreira do diretor: pela primeira vez, Tarantino trabalha com uma trilha original. Não bastasse a trilha ter sido concebida especialmente para o filme, ela é assinada por Ennio Morricone. Para quem, por acaso, não sabe, o italiano é autor de mais de 400 trilhas e responsável pelos clássicos do western spaghetti dirigidos por Sergio Leone: a trilogia dos dólares – Por um punhado de dólares (1964), Por uns dólares a mais (1965) e Três homens em conflito (1966), este também conhecido por O bom, o mau e o feio, além de Era uma vez no Oeste (1969).
O que Tarantino diz sobre
Ennio Morricone – É o meu compositor favorito, gosto mais dele do que de Beethoven, Chopin.
Samuel L. Jackson – Nunca converso com atores quando estou escrevendo um roteiro, nem mesmo um só detalhe. Tenho que ir até o final do processo. Não é difícil escrever para o Sam. Seria difícil não escrever para ele, porque ele interpreta os meus diálogos muito bem. Lembro-me que, no meio do processo de Kill Bill, concluí que o Bill (interpretado por David Carradine) se parecia muito com o Samuel L. Jackson. Aí tive que reescrever tudo para tirar Samuel de Bill.
Jennifer Jason Leigh – Todos os personagens foram escritos para os atores. O mais empolgante foi escrever a Daisy Domergue sem saber qual atriz a interpretaria. Ela tem um aspecto que a conecta com os anos 1990, precisava de uma atriz da época. A Jennifer chegou, fez um teste muito legal, mas eu não podia escolher a atriz num teste rápido. Comecei a assistir aos filmes dela – A morte pede carona (1986), Rush (1991), Georgia (1995) – um atrás do outro, e gostei muito dela. Algumas pessoas esqueceram-se dela nos anos 1990, mas a Jennifer é um Sean Penn versão mulher. Os filmes eram centrados na performance dela.
Gênero – Desenvolvi algo próximo do Kubrick: em todos os filmes que faço, ataco um novo gênero. Só não estou dizendo que faça tão bem quanto ele. Mas adoro faroeste, sempre quis fazer. Você precisa fazer pelo menos três para se considerar um diretor de faroeste – na época áurea, precisava de pelo menos oito. O racismo na América é uma parte ignorada nos faroestes, principalmente a escravidão antes da Guerra Civil, coisa que está em Django. Parte da diversão do que faço, e que me deixa ansioso, é que escrevo, mas não sei como farei os filmes. Quando fiz À prova de morte, nunca tinha feito perseguição de carro, que adoro. Antes de Kill Bill, nunca tinha feito nada sobre arte marciais, e aprendi a fazer. Depois de Django, eu já sabia como fazer (um faroeste).
John Carpenter – Se alguém vir só o título, pode deduzir que Os oito odiados seja algo como Sete homens e um destino ou Os doze condenados. Mas os oito não são uma equipe. Então, um bom paralelo seria provavelmente com O enigma de outro mundo (1982), de John Carpenter. Primeiro porque você tem no elenco também Kurt Russell; segundo porque a trilha é do Morricone; e terceiro porque imito John Carpenter. O enredo é semelhante: numa terra de ninguém, coberta de neve, um grupo de pessoas está preso numa situação em que ninguém confia em ninguém.
Diálogos – Desde Kill Bill, acho que fiz uma curva na minha carreira. Tive um movimento mais literário na minha escrita, os diálogos estão mais teatrais. Na verdade, sempre foram, só que agora minha escrita é definida por isto. Poderia ter feito Os oito odiados no palco, ele até pode vir a se tornar uma peça. Ou seja, hoje tenho um preciosismo maior com as palavras do que na época de Cães de aluguel. Meu diálogo não é para todos. O ator precisa ter um tipo de voz, o meu senso de humor.
Expectativa – Não tenho mulher, filhos, não faço filmes para pagar pensão, manter uma segunda casa. Então meu foco está nos filmes, todo o resto é secundário. Comecei a contar meus filmes quando fiz Kill Bill (2003/2004), que foi o quarto. Vou parar quando chegar ao décimo, então faltam dois. Então, quero manter o nível lá em cima, ficaria decepcionado se chegasse ao ponto em que as pessoas não esperassem qualidade, que dissessem “o Quentin já foi bom, 10 anos atrás”.
.