Se o cinema tem o poder de captar as transformações de um país, uma obra impactante como a transposição do Rio São Francisco tem tudo para irrigar o senso crítico e a criatividade dos cineastas do Brasil. O controverso projeto ainda foi pouco retratado em filmes nacionais, mas aos poucos começam a surgir produções cinematográficas (documentais e ficcionais) que abordam a questão direta ou indiretamente.
Imagens de obras na cidade de Cabrobó, em Pernambuco, podem ser vistas no documentário Transposição: águas de Satã (2006), produzido pelo coletivo Telephone Colorido. Em 35 minutos, o média-metragem denuncia a ocupação de terras tradicionais do povo indígena Truká para a construção de canais que receberão as águas do rio.
"Os ritos legais que deveriam ter sido seguidos para a instalação de semelhante obra em terra indígena foram negligenciados", aponta o historiador Otto Mendes, integrante do coletivo. O filme foi realizado pela Telephone em parceria com os Truká e os Tumbalalá e com a Comissão Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário e o Centro Josué de Castro.
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A transposição foi levada ao campo da ficção no longa-metragem Boa sorte, meu amor (2012), de Daniel Aragão, que tem cenas filmadas nas obras de um canal no município de Floresta. "O tema da transposição me pareceu o grande tema do Nordeste quando escrevi o personagem do pai de Maria (Christiana Ubach), um ambicioso empreiteiro corrupto interpretado por Carlo Mossy", lembra o diretor, que retratou o local em preto & branco "Vendo agora, percebo que eu já previa, em 2010, o estado das coisas do Brasil corrupto reveladas em 2015. Tava na cara. Quando filmamos lá em 2011, as obras estavam paradas por falta de verba."
Segundo Aragão, "na parede de concreto de uma das pernas da transposição, já cresciam naturalmente plantas de dois metros de altura, denunciando o abandono. Foi o dia de filmagem mais difícil de toda minha vida, sensação térmica de 45 graus e faltou água na locação porque a equipe precisou beber o triplo do planejado".
Um filme que deve mergulhar mais fundo no tema da transposição é Acqua movie, de Lírio Ferreira, que será filmado em 2016. O diretor pretende retratar as mudanças culturais, sociais e econômicas que as obras no São Francisco levaram para o interior do Nordeste a partir de uma reflexão sobre o significado simbólico da água.
NOVAS ATLÂNTIDAS
O curta-metragem De profundis, de Isabela Cribari, retrata o estado atual de Itacuruba, uma cidade que simplesmente sumiu em 1988 ao ser coberta de água por causa da construção da barragem de Itaparica, na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. No documentário, a cineasta retrata as ruínas submarinas das antigas casas e cria uma alegoria sobre os moradores do local, que tem uma das maiores taxas de suicídios do Brasil.
Uma inundação semelhante ocorreu em Rodelas, cidade natal de Wagner Moura, no interior da Bahia. O ator produziu um documentário sobre o assunto, junto com a fotógrafa Sandra Delgado (esposa dele), projetado na videoinstalação Cidades submersas na exposição São Francisco navegado por Ronaldo Fraga (apresentada no Recife em 2013).
O curta cearense Cidade nova (2015), de Diego Hoefel, retrata o drama de um personagem que retorna ao local onde nasceu, mas não consegue reencontrar-se, pois tudo foi inundado e as famílias foram removidas para novos conjuntos habitacionais por causa da construção do Açude do Castanhão. O local fica na bacia do Rio Jaguaribe, mas será interligado ao São Francisco por causa da transposição.
"Quando você perde a sensação de que sempre vai ter um lugar pra onde voltar, você entra em um caminho meio sem volta, porque por mais que passe a viver em outros lugares, você é sempre um pouco estrangeiro em qualquer canto que chega, inclusive quando volta para o lugar onde nasceu", reflete Hoefel. "Ali, voltar pra casa é impossível, porque a cidade hoje está submersa e isso é uma marca em todos, mesmo naqueles que já nasceram na cidade nova", lamenta o cineasta.
A temática também está presente na comédia Os narradores de Javé (2004), de Eliane Caffé. No filme, uma cidade está prestes a ser inundada por uma represa e seus moradores resolvem registrar (e inventar) antigos acontecimentos para que ela seja considerada um patrimônio histórico e não desapareça. José Dumont, Gero Camilo, Nelson Xavier e Matheus Nachtergaele estão no elenco.
SAIBA MAIS
Pelo menos oito cidades e distritos foram inundados por águas da Bacia do São Francisco nas décadas de 1970 e 1980 por causa da construção de barragens de Sobradinho e Itaparica, que são consideradas as primeira etapas do processo de transposição do rio que agora se desdobra. Nas obras atualmente em curso, não será mais necessário criar novas Atlântidas, apesar de ser necessário realojar milhares de famílias.
DEPOIMENTO DE ISABELA CRIBARI, DIRETORA DO CURTA DE PROFUNDIS:
"A relação das pessoas com seus lugares é muito maior do que se pensa. Não temos como prever o que o ocorrerá com a migração de pessoas por causa da transposição do Rio São Francisco, mas realmente não acredito que isto não as afetará negativamente. Não se pode tanger pessoas desta forma como se não tivessem consequências. Mudanças assim geralmente afetam muito as populações, que passam por novas adequações identitárias, redefinições diante do novo mundo e de si mesmos, um luto bastante complexo, que certamente enfraquece os laços sociais, e, como consequência direta deste processo, Itacuruba, por exemplo, tem altas taxas de suicídio. Emile Durkheim disse que quanto maiores os laços sociais em uma comunidade, menores as taxas de suicídio. Ir no sentido inverso certamente é bastante nocivo. É o que aconteceu com Itacuruba, é o que seus moradores contam no meu filme De profundis."