De repente, Olivia se vê enclausurada em seu apartamento, lidando com os inconvenientes raramente lembrados de uma gravidez. Lúcia, por sua vez, é forte e inteligente, mas tem no desaparecimento de sua filha sua maior fraqueza. A perspectiva de mulheres protagonistas de sua própria história e os tabus da maternidade são a base de duas recentes produções de artistas belo-horizontinas.
O filme Olmo e a gaivota, de Petra Costa e da dinamarquesa Lea Glob, estreia hoje nos cinemas (confira roteiro na página 4). O livro Resta um, da jornalista Isabela Noronha, ganha lançamento em BH dentro do projeto Sempre um Papo, no próximo dia 23.
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O filme explora os limites entre ficção e realidade com o relato de uma jornada angustiante. Olivia está refém dos limites impostos pelo próprio corpo. Ela quer ser livre, alcançar o sucesso em sua carreira e se vê inerte. “Sinto que tem um alien dentro de mim, que se nutre de mim e me impõe as regras do jogo”, afirma a atriz em uma das cenas do longa.
Petra Costa diz se sentir inquieta diante da abordagem constantemente celebratória da gravidez. Para ela, faltam exemplos no cinema e na literatura que mostrem, sob a perspectiva feminina, o que se passa na cabeça da futura mãe durante nove meses. “É um tabu milenar falar de gravidez desde Nossa Senhora: sem sexo, sem medo ou desejo. A sociedade naturalizou. Vira um pouco obrigação ter filhos para se completar enquanto mulher. É machista essa concepção, estabelece o controle do corpo da própria mulher”, afirma.
TENSÃO O texto de Tchekhov que permeia o filme não é uma escolha aleatória. Incrementa a tensão que as diretoras quiseram registrar. O título do longa é metáfora para o dilema de Olivia. O olmo é a árvore que quer criar raiz, e a gaivota deseja alçar voo. “É a mulher sendo puxada entre os céus e a terra, entre obrigações e afetividades”, diz Petra.
Olmo e a gaivota se instala desde o início na difusa fronteira entre ficção e realidade. “Nós nos conhecemos no teatro. Vivemos no teatro. Às vezes me pergunto se poderíamos viver na nossa própria pele”, questiona Olivia, a certa altura das filmagens.
A diretora se diz fascinada pelo fato de um casal de atores encenar a própria vida. “Eu quis assumir nosso papel (o dela e o de Lea Glob) como personagens por meio das vozes (em off) e intervenções. A máscara da atuação cai e pega os atores despreparados. Fizemos provocações de assuntos que vão além do que eles queriam mostrar”, ressalta.
Esse projeto se originou, segundo Petra, de seu desejo de realizar ficção com grupos de teatro, tendo um roteiro estrutural apenas como guia. As cenas viriam de improvisação dos atores. “É um tipo de teatro no qual acredito bastante. Tanto o Soleil quanto o da Vertigem usam esse método. O roteiro é engessado pela hierarquia do cinema”, avalia.
Com formação na área de psicologia e antropologia, Petra vê na investigação da realidade grande fonte de inspiração. “É a arqueologia dos afetos. Busco me aproximar e investigar os afetos dos personagens.”
As gravações começaram antes da gravidez de Olivia e seguiram durante toda a gestação. As mudanças psicológicas que a atriz experimentou foram registradas num diário de voz, feito a pedido das diretoras. A partir dele, novas cenas eram montadas.
Para Petra, o documentário é um instrumento mais realista, mas só por meio dele não é possível adentrar a mente de uma pessoa – “muito menos o banheiro”, lembra Petra, fazendo referência à cena do teste de gravidez, gravada posteriormente. “Há uma realidade interior em que a ficção se presta mais a mergulhar. Fiz a combinação dos dois para chegar nesse lugar de intimidade”, diz.
DOR QUE CONGELA OS DIAS
Parada no trânsito da Marginal Pinheiros, em São Paulo, Lúcia analisa os números de cada placa de carro à sua frente. Alguns são múltiplos de 9, outros formam o PI. Ao chegar em casa, descreve o prédio formado por quatro blocos de mesmo formato e volume com ângulos retos. Tudo é calculado na vida da professora de matemática da Universidade de São Paulo – até que sua filha desaparece.
É esse o enredo do romance Resta um, da jornalista e escritora Isabela Noronha, editado pela Companhia das Letras. Os números formam o cenário sob controle na vida da protagonista. “E justamente ter um filho já é abrir-se para essa inexatidão da vida, para um mundo de possibilidades boas e ruins”, diz a autora. Na avaliação dela, todos estamos acostumados a enxergar medida em tudo e um desaparecimento não tem desfecho: “É algo que se estica indefinidamente”. A ausência de precisão na vida da personagem agrava a sua dor.
O título do livro também remete aos números. “É uma brincadeira feliz. Guarda o sentido matemático do remate da operação e, ao mesmo tempo, tem tudo a ver com o jogo. Traz um pouco de mistério”, diz a escritora. Outro elemento importante na obra é o tempo. Os capítulos vão e voltam nos anos, relembrando momentos especiais de Lúcia com a filha Amélia, apelidada de Linha. “Acho que o tempo é também um personagem importante na história das pessoas que convivem com o desaparecimento de entes queridos. A relação com ele muda. O passado está no livro, porque está muito presente para Lúcia”, explica.
TEMA Isabela conta que seu trabalho como jornalista foi uma das inspirações para a criação da história. Em 2004, ela fez uma reportagem com várias mães que tiveram os filhos desaparecidos. “Já tinha feito diversas pautas (jornalísticas) doloridas, como famílias que perderam tudo na enchente, queda de avião e a cratera do metrô de São Paulo. Mas essa mexeu muito comigo e me acompanhou por todos esses anos. Quando me propus a escrever sobre ficção, foi de cara o primeiro tema com que quis trabalhar”, diz.
Assim como a cineasta Petra Costa, Isabela tem a disposição de, na literatura, abordar a mulher como protagonista de suas próprias histórias. “Sendo mulher, não consegui imaginar esse romance com outra perspectiva. Escrever na primeira pessoa foi a forma mais eficaz que consegui para trazer a pessoa para o lugar dessa mãe”, explica.
A escritora observa que a experiência da personagem Lúcia “é uma dor imaginada, não imaginável. Não faz parte do escopo de emoções de uma pessoa comum. É mais difícil de ser digerida que a própria morte, porque não tem desfecho. E é difícil seguir adiante por causa disso”.
RESTA UM
• De Isabela Noronha
• Editora Companhia das Letras
• 301 páginas, R$ 47,90