Desvencilhado de um roteiro antecipado, o cineasta Miguel Faria Jr. partiu para as filmagens do documentário Chico — Artista brasileiro, com estreia nas telas em 26 de novembro, sem muitas redes de segurança. “A gente vai com a ideia, mas não pode prever o que o Chico vai falar. O filme tem um lado que é documentário, meio jornalístico e tem outro, que é cinema, com dramaturgia e construção de roteiro. A ideia de que o filme ia ter arquivo e música já era prevista”, comenta Miguel Faria Jr. A partir de oito entrevistas, os temas floresceram. O roteiro foi gerado pelos tópicos, “para que nada ficasse chato”.
As 20 horas de conversas deram tempo para o aprimoramento das perguntas. Quase cinco décadas de amizade, naturalmente, aproximaram Chico do realizador. Curtida em bares dos anos cariocas de 1970, a relação era fruto da mescla entre “o pessoal de cinema e da música”. “Éramos da mesma geração, e trabalhando com cinema, música e teatro. Em comum, por muito tempo, tivemos a bebida — mas é hábito que não temos mais”, conta Faria Jr.
Obsessão
Se, para ele, amizade é algo tão difícil de explicar, o diretor crê que o ponto inicial foi o do respeito a diferenças. A transposição de um Chico íntegro, nas telas, foi quase uma obsessão. “Chico é uma pessoa assim: nada tímida e muito engraçada. Ele é muito reservado. E é um cara muito escaldado, e que jé levou muita porrada, ao mesmo tempo em que foi muito elogiado. Por isso, ele é reservado, em relação a invasões. Com alguém de confiança, ele se abre: tem um comportamento normal. Numa entrevista, com 30 pessoas e perguntas indiscretas, ele trava”, avalia o cineasta.
A ideia do documentário veio quando Miguel Faria Jr. concluiu a fita Vinicius (2005). “Vinicius de Moraes trabalhou, intensamente, até o fim dos anos 1960. Aquele filme mostra como a vida de um compositor é reflexo do que vive. Fiquei com vontade de explorar a continuação, já que o comportamento dos artistas mudou. Antes, o artista fazia show até de bermuda, e, hoje, existe a revista Caras. Nessas transformações, foi natural pensar no Chico”, diz. O filme não tem pretensão biográfica sobre o Chico: trata-se de particularizado olhar sobre ele. “Já se escreveu sobre ele, já se fez filme, eu bebi de muita coisa. Podem ser feitos vários filmes sobre ele. A série do Roberto de Oliveira (com 12 episódios) vejo mais como registro jornalístico e de recuperação de material de arquivo, e adoro. Mas, é outra coisa”, acredita.
A música, seguramente, aproximou Chico do cineasta. Foi na época do filme Na ponta da faca (1977) que Chico declinou do convite de Faria Jr. para fazer uma música, por problemas de agenda. Mas contribuiu para outros filmes do artista, como República dos assassinos (1979), Para viver um grande amor (1984) e Stelinha (1990), além de O xangô de Baker Street (2001). Num mar de mais de 500 músicas de Chico, Faria Jr. nadou com dificuldade para seleções do filme.
“Não queria que a cada música se parasse o filme. Isso é chato. Dar equilíbrio, veio de alinhar as músicas aos temas que estavam sendo falados. De forma explícita ou não, sempre se tem isso. Até hoje, o Chico trabalhou com praias e ritmos diferentes. Quis contemplar a diversidade das músicas”, comenta. Nisso, despontam números inteiros de músicas como Mambembe, As vitrines e Sabiá.
Tratamento de ficção
Para além de músicas interpretadas por artistas como Laila Garin, Ney Matogrosso e Péricles, uma ampla pesquisa a cargo de Antônio Venâncio deu sustento ao longa. “Com figurino, maquiagem, luz e fotografia elaborada, seguimos um tratamento de filme de ficção. Aliás, eu teria sim um material para, futuramente, fazer um seriado”, conta Faria Jr.
Entre vários temas que imantam o filme, a atual postura política de Chico Buarque transparece. “Ele fala muito claramente: ‘A minha participação, até a democratização, foi intensa. Conseguimos a liberdade que aí está’. Chico diz que entusiasmo foi feito para passar. Diz que participou de eleições, apoiou candidatos e tal, e que o interesse por participação política dele cada vez tem diminuído. ‘Eu quero fazer música; sou um artista, não um político’, reforça”, assinala o diretor.
Três perguntas / Miguel Faria Jr.
A descoberta do irmão alemão de Chico é dos pontos altos do filme. Como se chegou àquilo?
No momento em que ele resolveu escrever o livro (O irmão alemão), eu já estava começando o filme e ele escreve aquilo, inventando o irmão alemão. E no tom de “se ele tivesse aparecido, como ele seria?”. O livro dele é isso: uma verdadeira ficção. Pela convivência com a invenção, Chico começou a entrar em crise para terminar o livro e achou que era importante tentar o tal irmão do qual não sabia nada. Peguei ele, justo aí: indo atrás do irmão. Ficou engraçada a revelação de que o irmão também era cantor, mais velho, vivia na Alemanha Oriental e tinha um programa de entrevistas muito famoso — isso no canal único da Alemanha comunista; num estilo à la Jô Soares.
Você percebeu um esforço do Chico em se renovar, às vésperas das filmagens, quando era quase setentão?
O Chico é o artista que, como dito no filme, quer fazer o que ele não sabe — nisso, já vem uma renovação embutida. Ele diz: “Não quero fazer o que já sei; não quero me repetir”. Outro dado é o de que o Chico sempre renovou, dentro da tradição. Ele nunca foi um artista de vanguarda e de ruptura. Não é à toa que acaba o filme com ele jovem, cantando com Pixinguinha, Dorival Caymmi. A música dele, hoje, não tem nada a ver com as primeiras músicas. Artisticamente, ele não pode ser acusado de fazer a mesma coisa.
Houve alguma reserva da parte dele, em algum momento?
Quando eu disse que ia fazer o filme, ele topou e não houve nenhum tipo de recomendação, restrição ou comentário. Disse para ele: “Preciso de você, trabalhando tantos dias e cantando tantas músicas. A partir daí, só vamos ver o filme quando estiver pronto”. Como a gente é amigo, convive, não falamos sobre o filme. Um lado te dá liberdade, por ser um amigo, mas, por outro lado, isso te constrange. Nisso, preferimos o afastamento.
As 20 horas de conversas deram tempo para o aprimoramento das perguntas. Quase cinco décadas de amizade, naturalmente, aproximaram Chico do realizador. Curtida em bares dos anos cariocas de 1970, a relação era fruto da mescla entre “o pessoal de cinema e da música”. “Éramos da mesma geração, e trabalhando com cinema, música e teatro. Em comum, por muito tempo, tivemos a bebida — mas é hábito que não temos mais”, conta Faria Jr.
Obsessão
Se, para ele, amizade é algo tão difícil de explicar, o diretor crê que o ponto inicial foi o do respeito a diferenças. A transposição de um Chico íntegro, nas telas, foi quase uma obsessão. “Chico é uma pessoa assim: nada tímida e muito engraçada. Ele é muito reservado. E é um cara muito escaldado, e que jé levou muita porrada, ao mesmo tempo em que foi muito elogiado. Por isso, ele é reservado, em relação a invasões. Com alguém de confiança, ele se abre: tem um comportamento normal. Numa entrevista, com 30 pessoas e perguntas indiscretas, ele trava”, avalia o cineasta.
A ideia do documentário veio quando Miguel Faria Jr. concluiu a fita Vinicius (2005). “Vinicius de Moraes trabalhou, intensamente, até o fim dos anos 1960. Aquele filme mostra como a vida de um compositor é reflexo do que vive. Fiquei com vontade de explorar a continuação, já que o comportamento dos artistas mudou. Antes, o artista fazia show até de bermuda, e, hoje, existe a revista Caras. Nessas transformações, foi natural pensar no Chico”, diz. O filme não tem pretensão biográfica sobre o Chico: trata-se de particularizado olhar sobre ele. “Já se escreveu sobre ele, já se fez filme, eu bebi de muita coisa. Podem ser feitos vários filmes sobre ele. A série do Roberto de Oliveira (com 12 episódios) vejo mais como registro jornalístico e de recuperação de material de arquivo, e adoro. Mas, é outra coisa”, acredita.
A música, seguramente, aproximou Chico do cineasta. Foi na época do filme Na ponta da faca (1977) que Chico declinou do convite de Faria Jr. para fazer uma música, por problemas de agenda. Mas contribuiu para outros filmes do artista, como República dos assassinos (1979), Para viver um grande amor (1984) e Stelinha (1990), além de O xangô de Baker Street (2001). Num mar de mais de 500 músicas de Chico, Faria Jr. nadou com dificuldade para seleções do filme.
“Não queria que a cada música se parasse o filme. Isso é chato. Dar equilíbrio, veio de alinhar as músicas aos temas que estavam sendo falados. De forma explícita ou não, sempre se tem isso. Até hoje, o Chico trabalhou com praias e ritmos diferentes. Quis contemplar a diversidade das músicas”, comenta. Nisso, despontam números inteiros de músicas como Mambembe, As vitrines e Sabiá.
Tratamento de ficção
Para além de músicas interpretadas por artistas como Laila Garin, Ney Matogrosso e Péricles, uma ampla pesquisa a cargo de Antônio Venâncio deu sustento ao longa. “Com figurino, maquiagem, luz e fotografia elaborada, seguimos um tratamento de filme de ficção. Aliás, eu teria sim um material para, futuramente, fazer um seriado”, conta Faria Jr.
Entre vários temas que imantam o filme, a atual postura política de Chico Buarque transparece. “Ele fala muito claramente: ‘A minha participação, até a democratização, foi intensa. Conseguimos a liberdade que aí está’. Chico diz que entusiasmo foi feito para passar. Diz que participou de eleições, apoiou candidatos e tal, e que o interesse por participação política dele cada vez tem diminuído. ‘Eu quero fazer música; sou um artista, não um político’, reforça”, assinala o diretor.
Três perguntas / Miguel Faria Jr.
A descoberta do irmão alemão de Chico é dos pontos altos do filme. Como se chegou àquilo?
No momento em que ele resolveu escrever o livro (O irmão alemão), eu já estava começando o filme e ele escreve aquilo, inventando o irmão alemão. E no tom de “se ele tivesse aparecido, como ele seria?”. O livro dele é isso: uma verdadeira ficção. Pela convivência com a invenção, Chico começou a entrar em crise para terminar o livro e achou que era importante tentar o tal irmão do qual não sabia nada. Peguei ele, justo aí: indo atrás do irmão. Ficou engraçada a revelação de que o irmão também era cantor, mais velho, vivia na Alemanha Oriental e tinha um programa de entrevistas muito famoso — isso no canal único da Alemanha comunista; num estilo à la Jô Soares.
Você percebeu um esforço do Chico em se renovar, às vésperas das filmagens, quando era quase setentão?
O Chico é o artista que, como dito no filme, quer fazer o que ele não sabe — nisso, já vem uma renovação embutida. Ele diz: “Não quero fazer o que já sei; não quero me repetir”. Outro dado é o de que o Chico sempre renovou, dentro da tradição. Ele nunca foi um artista de vanguarda e de ruptura. Não é à toa que acaba o filme com ele jovem, cantando com Pixinguinha, Dorival Caymmi. A música dele, hoje, não tem nada a ver com as primeiras músicas. Artisticamente, ele não pode ser acusado de fazer a mesma coisa.
Houve alguma reserva da parte dele, em algum momento?
Quando eu disse que ia fazer o filme, ele topou e não houve nenhum tipo de recomendação, restrição ou comentário. Disse para ele: “Preciso de você, trabalhando tantos dias e cantando tantas músicas. A partir daí, só vamos ver o filme quando estiver pronto”. Como a gente é amigo, convive, não falamos sobre o filme. Um lado te dá liberdade, por ser um amigo, mas, por outro lado, isso te constrange. Nisso, preferimos o afastamento.