Centenário de Grande Otelo inspira trabalho de atores negros no Brasil

No centenário de nascimento do maior ator negro do Brasil, Estado de Minas ouve grandes artistas sobre sua trajetória e seu legado

por Shirley Pacelli 18/10/2015 11:00
PAULO NAMORADO/O CRUZEIRO/EM/D.A.PRESS
(foto: PAULO NAMORADO/O CRUZEIRO/EM/D.A.PRESS)
“Talentoso homem que veio dos estratos mais pobres, Grande Otelo teve que aprender tudo no peito e na garra. Como outros atores negros, para sua sobrevivência teve que fazer rir.” É com carinho e uma dose alta de emoção que o ator Milton Gonçalves fala do companheiro de cena e amigo, cujo centenário de nascimento é comemorado hoje. Sebastião Bernardo da Costa por gosto próprio mudou seu sobrenome para Bernardes de Souza Prata. Em meados da década de 1930, a ousadia e a espontaneidade do homem de um metro e meio levam a arte a batizá-lo de Grande.


Milton já conhecia Otelo do cinema, mas foi na TV Globo, na década de 1960, que eles se encontraram. “Ele era um tremendo de um comediante.” Com saudades, lembra-se ainda dos tempos em que substituía Otelo na marcação de cena (stand in no jargão artístico) no show Frenesi, dirigido por Carlos Manga, em 1966, no Copacabana Palace. “Uma vez, o Manga estava danado. Deu bronca no Otelo, porque ele chegou atrasado. Tive que cantar a música no lugar dele. E Otelo ficou no cantinho me vendo e falando ‘fé da puta, fé da puta’. Ele não faltou mais”, recorda, entre risos.


Em outra oportunidade, com a ausência já combinada com o diretor, para Otelo receber um prêmio nos EUA, Milton assumiu o lugar da estrela. “Ia muito gringo ao Copacabana. A banda tocava, tinha aquelas luzes e um balé enorme. O Otelo aparecia, e as palmas eram estrondosas. Comigo foram raras. Um gringo falou: ‘Oh my God! Oh my God! He is not Otelo’. Respondi: I am not him, but I will do my best for you (Não sou ele, mas farei meu melhor para você)”.


O aprendizado com Otelo, segundo Milton, era diário. Mas não eram raros os momentos em que Milton passava um “pito” no mestre, especialmente aconselhando-o a não beber. Com a voz embargada ao telefone, Milton relembra que, em 1993, quando o corpo de Otelo chegou ao Cemitério São Pedro, queriam levar o caixão em um carrinho. “Tenho esses repentes de comandar as coisas. Falei que iríamos levá-lo nas costas. Ele merecia esse nosso sacrifício físico. Tantas vezes nos proporcionou um ‘salariozinho’ no show de Copacabana.”


Na avaliação de Milton, “se ele fosse um ator de olhos azuis, pele branca e cabelos aloirados, talvez não sofresse tanta humilhação”. A atriz Zezé Motta também contracenou com Otelo. “Acho que é a única pessoa no mundo que, com aquela estatura, tinha o título de grande. Para nós brasileiros, mas especialmente nós artistas negros, ele significou muito”, diz.
Zezé trabalhou com Otelo em A força de Xangô (1978), de Iberê Cavalcanti, e Quilombo (1984), de Cacá Diegues. “Foi um precursor, não se pode negar. Ele nos encheu de orgulho com seu talento, perseverança e a luta para ter uma carreira como ator negro no Brasil. Ele foi pra nós uma motivação de que, como diz o presidente Obama, sim, nós podemos.”

FASCÍNIO

 

“Contracenando com ele (em Quilombo), uma vez esqueci que fazia parte da cena de tão fascinada que estava. Ele contava histórias para crianças falando com tanto empoderamento, misturava a sabedoria do personagem com a dele. Eu deveria ter reações, tinha o texto, e esqueci”, lembra Zezé.


Com 50 anos de carreira, a atriz comenta que “dá pra ver a olhos nus” a falta de espaço para o ator negro. “Tem o Lazáro Ramos, a Taís Araújo, a Camila Pitanga… Mas ainda temos atores negros fora de cena. Só existe a presença massiva quando o tema é escravidão”, diz, esclarecendo que prefere não colocar a realidade em tom de lamentação. “Vejo como fruto de uma luta que começou com o Grande Otelo.”


Assim como Zezé, o músico, ator e diretor Maurício Tizumba acredita que Otelo abriu caminho para a comunidade negra no meio artístico. “Ele foi um dos maiores artistas de todos os tempos do cinema e do teatro e vivemos num país racista”, destaca. Tizumba já interpretou Grande Otelo. Ele atuou em Hollywood Bananas (1993), de Eid Ribeiro, e em Grande Otelo – Eta moleque bamba (2004), de Vilma Melo. “Quando faço o Grande Otelo, faço um papel muito próximo da minha história. Sempre foi muito forte”.


Babu Santana, um dos destaques da nova geração de atores negros no Brasil, que interpretou Tim Maia no cinema e está no ar em I love Paraisópolis, tem Otelo como o símbolo maior de atuação no Brasil, independentemente da cor da pele. “Ele foi revolucionário, porque atuou num período em que o cinema americano tinha uma grande influência, com os musicais sendo protagonizados por atores com traços europeus falando português.” Santana diz que, “quando tem um preto fazendo sucesso, a visibilidade fica enorme, porque muitos brasileiros se identificam. A questão é não rotular mais.”

VIVÊNCIA

 

Em BH, o ator Felipe Soares, de 28 anos, criou a Cia Negra de Teatro, formada por alunos do curso de teatro da Fundação Clóvis Salgado. A ideia é falar do ponto de vista do ator negro da periferia. “Os treinamentos envolvem elementos da cultura negra como capoeira e dança afro. A estética teatral tradicional tem muita influência europeia. Queremos algo que seja parte da nossa vivência.”


Para Soares, Otelo é referência. “Mesmo com todos os percalços ele conseguiu estabelecer seu lugar, ainda que muitas vezes onde o negro já era inserido, em papéis estereotipados. Eu sentia uma diferença de tratamento entre ele e o Oscarito – a forma como as carreiras deslancharam.”


O sambista e escritor Nei Lopes (Rio Negro 50) diz que a trajetória profissional de Grande Otelo representa “a vitória pelo talento incomensurável, embora enfrentando todas as adversidades”. O compositor diz se lembrar do dia em que foi à casa do ator, no final da década de 1980.


“Era para um trabalho do qual ele me incumbira: um musical sobre sua vida, que eu apenas iniciei. Fui lá imaginando encontrar um artista decadente e desanimado e o encontrei tirando medidas do apartamento com um profissional encarregado da reforma do imóvel, muito animado. Aquilo me fez um bem extraordinário. Depois, a morte súbita, aos 78 anos, desembarcando no aeroporto, em Paris, foi vista por mim como uma metáfora de sucesso. Afinal, Paris sempre recebeu bem a arte e a intelectualidade negra. E ali estava um dos maiores artistas afro-brasileiros de todos os tempos”, afirma Lopes.


Sobre o espaço dado hoje aos atores negros no Brasil, Lopes é enfático: “De vez em quando tiram um da cartola e olhe lá. Mas, no geral, aparecem lá atrás, vestidos de empregados, com o espanador ou a bandeja na mão. E, mais recentemente, com o revólver no lugar do espanador.”

 

 

Linha do tempo

 

  • 1915 No dia 18 de outubro, nasce Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Otelo, na então São Pedro de Uberabinha, conhecida hoje como Uberlândia (MG)
  • 1923 Ainda criança, apresenta-se em um picadeiro de circo como Bastiãozinho, de braços dados com um palhaço
  • 1926 Estreia no teatro
    com Nhá Moça, em Campinas (SP)
  • 1927 Participa da Cia Negra de Revistas, que tinha Pixinguinha como maestro
  • 1932 Ganha o apelido “The great Otelo” de Jardel Jércolis, um dos pioneiros do teatro de revista. Com o tempo, o nome ganhou versão em português
  • 1938 Torna-se a estrela do Cassino da Urca
  • 1940 Até meados dos anos 1950, faz parcerias com Oscarito em comédias como Matar ou correr e Carnaval no fogo
  • 1942 Participa do filme It’s all true, de Orson Welles
  • 1943 Interpreta sua própria história no cinema: Moleque Tião
  • 1949 Uma tragédia abala sua vida: sua primeira mulher mata o filho menor e suicida-se
  • 1960 É contratado pela Rede Globo e participa de novelas de sucesso como Uma rosa com amor (1972) e Sinhá Moça (1986)
  • 1969 É lançado Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, em que interpreta o papel-título
  • 1982 Participa de Fitzcarraldo, de Werner Herzog, filmado na Amazônia
  • 1990 Participa da Escolinha do professor Raimundo com o personagem Eustáquio. Eterniza o bordão ‘‘Aqui. Que queres?”
  • 1993 Morre de um ataque fulminante do coração em Paris, onde seria homenageado no Festival de Nantes

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