Cinema

Diretora argentina Lucrecia Martel fala sobre temas que discute em seus filmes

Cineasta se diz inspirada pelo geógrafo brasileiro Milton Santos. Lucrecia é homenageada pela 9ª edição da mostra Cine BH que acontece neste mês

Carolina Braga

Lucrecia Martel terá seus três longas e seis de seus curtas exibidos na Mostra Cine BH (15/10 a 22/10)
A diretora argentina Lucrecia Martel não é mulher de superficialidades. Em 27 anos de carreira como cineasta, assinou apenas três longas de ficção. Todos eles têm marcas bem registradas da personalidade de sua autora. Ela já tratou de conflitos familiares, abuso sexual e formação da identidade.
Graças à originalidade com que conta suas histórias (somada à valentia de abordar sem rodeios temas-tabu), Lucrecia foi escolhida como homenageada da 9ª edição da Mostra Cine BH, que será realizada entre 15 e 22 deste mês, na Fundação Clóvis Salgado e no Centoe Quatro.


Além de O pântano (2001), A menina santa (2004) e A mulher sem cabeça (2007) – os três longas da cineasta –, serão exibidos seis curtas realizados por ela. Depois de sete anos sem lançar um longa, Martel prepara para o ano que vem Zama, adaptação da obra homônima do argentino Antonio Di Benedetto (1922-1986). O ator brasileiro Matheus Nachtergaele integra o elenco.

Ainda imersa no processo criativo da nova obra, Lucrecia diz que este momento de sua carreira é de expansões – estéticas e geográficas. “Certamente há mudanças, embora eu ainda não saiba o que Zama será. Acho que agora me incomodam menos os olhos dos personagens. Continuo me interessando muito pelo cabelo e as velocidades em geral. As mãos me despertam mais curiosidade. Continuo usando meus dispositivos sonoros para a construção da imagem”, afirma, em entrevista ao Estado de Minas. Leia a seguir.


Qual é a grande pergunta da atualidade para o cinema de Lucrecia Martel?

Um filme, na minha opinião, é um processo de pensamento. Espero que ninguém deixe de fora os sentimentos e emoções nesta declaração, como se fossem modos de pensamento. Em O pântano (2001), o que me perturbava era o desamparo divino, a criatura à sua sorte em um mundo que não se sente capaz de modificar.

Em A menina, santa, as preocupações eram sobre o mal e o bem como disfarce inútil. Em A mulher sem cabeça, a curiosidade era sobre a responsabilidade e o esquecimento como uma saída cujo preço é diminuir o vivido. Ainda não tenho claro sobre Zama (seu novo filme). Acho que é sobre o valor do tempo presente numa existência absurda e sem sentido como a do ser humano. Digo tudo isso com o maior otimismo.

Zama é também sua primeira coprodução com o Brasil. Qual é a característica mais forte dessa parceria?

Espero que Zama seja um testemunho suficiente de que as coproduções entre nossos países ampliam as possibilidades narrativas e que não se trata de uma mera questão de possibilidade de financiamento. Neste filme, brasileiros e argentinos trabalharam lado a lado. Tenho certeza de que isso enriqueceu o resultado.

Qual é a sua opinião sobre o cinema brasileiro de hoje?

Creio que compartilhamos alguns males. O cinema brasileiro, assim como o argentino, está nas mãos de uma classe média acomodada. Isso marca muito seus limites. Além disso, creio que há muita gente talentosa, uma força produtiva em regiões distintas do país. Aqui, o grosso do cinema surge e é filmado em Buenos Aires. Essa característica homogeniza muito nosso cinema. Faz falta nos observarmos mais sem preconceitos. Não correr atrás de novos formatos que se impõem no mercado, como as séries de TV, que têm mais aduladores do que gente pensando em sua utilidade para nossa cultura.

Você tem fama de anotar coisas aleatoriamente, ideias que podem vir a ser futuros roteiros. Como é seu processo de criação de um filme?

Faz muito tempo desde que um rapaz brasileiro me recomendou um livro, depois de uma palestra que dei em Porto Alegre, e perdi seu contato, para agradecer suficientemente pela indicação de A natureza do espaço, do (geógrafo brasileiro) Milton Santos (1926-2001). É um livro para o qual volto com muita frequência como fonte de inspiração. Isso e conversar. Gosto de conversar com as pessoas, especialmente com todas as pessoas. É dos diálogos dos outros que aparecem sempre as ideias para as minhas coisas. Gosto de escutar e roubei muita coisa assim.

Em sua opinião, o cinema é um elemento para constituição da identidade de um povo ou ele representa uma identidade já constituída?

Isso é o mais importante do que temos a falar hoje. O que nos une, o que nos converte em uma comunidade, não se define quase nada por limites políticos, por uma bandeira e, inclusive, por uma língua, mas, principalmente, por um conjunto de signos que temos compartilhado ao longo do tempo. A identidade não sei bem o que é. E suspeito que não seja algo bom. O que verdadeiramente importa é o que nos constitui como comunidade.

Esse tecido delicado que nos une aos outros, que nos empurra a conversar, a rir, a dançar, a chorar juntos. Esse tecido poderoso e delicado, vulnerável durante todas as ditaduras, reconstruído com dificuldade nas democracias posteriores e ameaçado sempre pela banalidade do mercado. Essa matéria levíssima que se constrói com o cinema, com a literatura, com o futebol, com a comida, com o teatro, com o grafite, com todas as ações humanas que têm como destino compartilhar com os outros essa estranha experiência da existência. Esse intercâmbio constitui não sei se uma identidade, mas sim um sentido de pertencimento.

Pela primeira vez você filma uma adaptação, e não um roteiro original seu, e pela primeira vez também roda fora de Salta (Argentina). Pode-se esperar uma mudança nas marcas da sua cinematografia?

Geograficamente, há uma mudança, mas não me distancio da minha cidade natal, Salta. Expando as suas fronteiras para o grande Chaco Gualamba, região que dividimos com Bolívia, Paraguai e Argentina. Certamente há mudanças, embora eu ainda não saiba o que Zama será. Acho que agora me incomodam menos os olhos dos personagens. Continuo me interessando muito pelo cabelo e as velocidades em geral. As mãos me despertam mais curiosidade. Continuo usando meus dispositivos sonoros para a construção da imagem.

A relação com o espaço é outra característica forte em sua obra. Que conexões há entre tempo e espaço no novo filme, levando-se em conta que a trama original de Zama se passa no século 18?

Gostaria de que me fizesse essa pergunta novamente daqui a um ano. No momento, estou envolvida em uma montanha de intuições, no meio do processo de construção deste filme. O que tenho certeza é que esta pergunta é chave. Antes de Zama, estive trabalhando em um roteiro de ficção científica. Pensei muito sobre futuro e passado.

Quando pensamos uma história que se passa em um futuro distante, somos capazes de nos libertar de certo determinismo tecnológico, social e, inclusive, de nossos próprios confins orgânicos. Por outra parte, quando pensamos no passado, com muita frequência caímos na armadilha da história, da fidelidade. Fidelidade a quê? Em nossa história latino-americana, o que menos precisamos é continuar sendo fiéis a um relato escrito por gente de intenções tão duvidosas.

OS LONGAS DE LUCRECIA MARTEL

O pântano
(La ciénaga, 2001)

Longa de estreia de Lucrecia Martel, vencedor do prêmio Alfred Bauer no Festival de Berlim. Imersos em seus problemas individuais e conflitos interpessoais, os membros de duas famílias conduzem sua rotina normal, embora pareçam à beira
do colapso emocional.

A menina santa
(La niña santa, 2003)

Um congresso de otorrinolaringologia leva um médico da cidade grande ao interior da Argentina, onde as jovens frequentam aulas de religião. O encontro do médico com uma das adolescentes fará a vida e os pontos de vista de ambos mudarem.
 
A mulher sem cabeça
(La mujer sin cabeza, 2007)

Verónica é uma dentista de classe média alta. Um dia, enquanto dirige, se descuida e o carro acaba passando por cima de
algo. Incerta da gravidade do acidente que provocou, ela vai perdendo sua conexão com a realidade.