Do Rio de Janeiro*
No final da década de 1960, autoexilado em Roma e à espera da primeira filha, Chico Buarque se vê sem dinheiro. Descobre-se então músico profissional: precisa tocar para sobreviver. Bem recebido na Itália graças ao sucesso de A banda (1966), combina uma temporada de shows com a cantora e dançarina Josephine Baker, já em fim de carreira. Um fracasso retumbante. O público, da idade de Josephine (que havia nascido no início do século), simplesmente não respondeu às apresentações. As pessoas pouco se mexiam nas cadeiras.
Teria nascido ali o propalado trauma que Chico tem de se apresentar em público. E a temporada italiana, que se estendeu por quase dois anos, não ajudou em nada. Com Toquinho, armou um show num castelo nos arredores de Roma. Lá chegando, descobriu que na plateia não havia mais que 15 pessoas. Novamente, ninguém se mexia. Ao violão, a dupla teve que tocar A banda pelo menos umas cinco vezes para conseguir alguma reação da diminuta audiência.
Esta análise é feita hoje, quase 50 anos mais tarde, pelo próprio Chico. É de gargalhar vê-lo levantar os dedos indicadores para mostrar como os italianos reagiram ao show no castelo – Chico e Toquinho, por sinal, resolveram chutar o balde e encerraram a apresentação com Mamãe eu quero.
Chico – Artista brasileiro, documentário de Miguel Faria Jr., que teve sua primeira exibição pública anteontem à noite, no Cine Odeon, na abertura do Festival do Rio, é recheado desses momentos. Em casa, sem reservas e numa conversa muito informal, Chico revela-se um bem-humorado contador de casos.
Chico Buarque conta, por exemplo, que quando foi convidado em 2007 pelo jogador Figo para um amistoso beneficente em Portugal, viu a cara que Zidane fez quando o cumprimentou em campo. “Quem é esse velho?”, era o que a expressão do craque francês dizia. Depois da partida, sentiu-se um verdadeiro jogador de futebol. Havia até comprado roupa Armani para a comemoração.
DESMITIFICANDO
É esse o grande mérito do filme de Faria Jr., diretor de Vinicius, que em 2005 levou 300 mil espectadores aos cinemas, um recorde entre os documentários pós-retomada do cinema nacional. Desmitifica o cantor e compositor, deixando-o muito próximo do espectador. Tomando como eixo a memória – a real e a imaginária – e como ela muda de perspectiva com a passagem dos anos, o filme, que tem previsão de estreia em 26 de novembro, reconta a trajetória de Chico na primeira pessoa.
O formato é convencional: ordem cronológica, imagens de arquivo – algumas raras, como a entrevista no desembarque em Roma e o show que fez com Caetano em Salvador, logo após a volta do exílio – e entrevistas com Miúcha, Wilson das Neves e Ruy Guerra, entre outros.
Amigos há muitos anos, Chico e Faria Jr. têm a mesma idade: 71 anos. O cantor, compositor e escritor (que é realmente o que ele se considera) recebeu o cineasta em sua casa. Entremeando as conversas, canções de diferentes fases são interpretadas por Ney Matogrosso (As vitrines), Milton Nascimento e Carminho (Sobre todas as coisas), Adriana Calcanhotto e Mart’nália (Biscate).
As canções não são colocadas ao acaso. Costuram as falas do Chico de hoje e o de ontem. Por exemplo: ele fala da dificuldade em ser aceito pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. É através da literatura que eles se acertam. O pai não se importava em ter um filho músico, ao contrário da mãe, Maria Amélia, que preferia vê-lo longe dos palcos.
Uma imagem de Memélia subindo ao palco para ver o filho, então alçado ao estrelato dos festivais com A banda, é bastante reveladora. Foi também com esse seu primeiro sucesso que Chico se relacionou com os grandes. “Eu queria ser Tom, Vinicius e um pouquinho de João Gilberto”, admite. Sempre teve dificuldade em letrar as músicas que Tom Jobim lhe enviava. Não se achava capaz. O maestro, mais tarde, disse que ficava com medo de enviar músicas demais para “não chateá-lo”.
O casamento de 30 anos com Marieta Severo é um assunto caro ao filme. O compositor diz que não esperava se ver sozinho de novo. “Ela era sempre a primeira que ouvia minhas músicas”, revela. Mas arremata dizendo que hoje não sente a solidão, precisa dela para trabalhar.
Os assuntos vão se sucedendo. A política ganha destaque durante o período militar. Na obra musical dele, a questão termina em Vai passar (1983), seu último samba político. Ao irmão alemão de Chico, Faria Jr. reserva boa parte da narrativa. Tema de seu mais recente romance, o irmão só passou a fazer parte da vida do compositor depois de um comentário de Manuel Bandeira. Chico tinha 23 anos quando ouviu falar da existência dele.
Pesquisou a fundo o destino do filho que Sérgio Buarque teria tido – e nunca conhecido – na Berlim de 1930. Seu irmão, Sergio Ernst, morreu em 1981. Foi um ator e cantor alemão. Em Berlim, Chico tenta cantarolar A banda em alemão. “Se essa música foi muito conhecida aqui, então de alguma maneira meu irmão me conheceu, não?”, comenta ele, como criança, para seu interlocutor.
É esse o retrato nada em branco e preto, mas repleto de cor, que o filme de Faria Jr. revela.
Três perguntas para...
Miguel Faria Jr., cineasta
Como foi o processo de filmagem?
De filmagem mesmo com o Chico foi uma semana, filmando o dia inteiro. Esse filme é meio sui generis, começou a partir de uma ideia, mas sem roteiro. Não podia escrever um roteiro e pedir para o Chico ser o personagem que estava na minha cabeça. Tinha que vir dele, que falava sobre um tema e eu ia para a edição e roteirizava. Depois de todas as entrevistas, já com o roteiro, voltei à casa dele umas duas ou três vezes para aprofundar alguns assuntos. Mas o filme foi meio que construído na edição.
Este é seu primeiro filme desde Vinicius. Como foi documentar um artista vivo e outro morto?
Vinicius cobria uma parte da história do Brasil por meio da música, dos anos 1920 até os 1960. Quis continuar essa história, mostrar as transformações na música que deram nessa geração espetacular do Chico. São dois filmes completamente diferentes, porque no primeiro você tem um final. É só memória mitificada de um compositor. Já o Chico está presente. O filme mostra um artista na maturidade, falando como pensa o Brasil, o mundo e a carreira. No caso do Chico, você está fazendo o filme o tempo inteiro, pois vai encontrando caminhos diferentes. Foi como se eu escrevesse um romance, pois não sabia o que iria acontecer.
Durante o processo do filme, que descobertas você fez sobre Chico Buarque?
Minha curiosidade maior era saber o que uma pessoa precisa fazer para ter uma obra literária e musical como a do Chico. Vi que ele leva a vida em função do trabalho. Faz aquilo 24 horas por dia, está disponível o tempo inteiro. Mas o trabalho que dá para fazer isso me surpreendeu. É como diz o Caymmi: “Todo mundo gosta de abará. Ninguém quer saber o trabalho que dá”.
* A repórter viajou a convite da Sony Pictures
No final da década de 1960, autoexilado em Roma e à espera da primeira filha, Chico Buarque se vê sem dinheiro. Descobre-se então músico profissional: precisa tocar para sobreviver. Bem recebido na Itália graças ao sucesso de A banda (1966), combina uma temporada de shows com a cantora e dançarina Josephine Baker, já em fim de carreira. Um fracasso retumbante. O público, da idade de Josephine (que havia nascido no início do século), simplesmente não respondeu às apresentações. As pessoas pouco se mexiam nas cadeiras.
Teria nascido ali o propalado trauma que Chico tem de se apresentar em público. E a temporada italiana, que se estendeu por quase dois anos, não ajudou em nada. Com Toquinho, armou um show num castelo nos arredores de Roma. Lá chegando, descobriu que na plateia não havia mais que 15 pessoas. Novamente, ninguém se mexia. Ao violão, a dupla teve que tocar A banda pelo menos umas cinco vezes para conseguir alguma reação da diminuta audiência.
Esta análise é feita hoje, quase 50 anos mais tarde, pelo próprio Chico. É de gargalhar vê-lo levantar os dedos indicadores para mostrar como os italianos reagiram ao show no castelo – Chico e Toquinho, por sinal, resolveram chutar o balde e encerraram a apresentação com Mamãe eu quero.
Chico – Artista brasileiro, documentário de Miguel Faria Jr., que teve sua primeira exibição pública anteontem à noite, no Cine Odeon, na abertura do Festival do Rio, é recheado desses momentos. Em casa, sem reservas e numa conversa muito informal, Chico revela-se um bem-humorado contador de casos.
Chico Buarque conta, por exemplo, que quando foi convidado em 2007 pelo jogador Figo para um amistoso beneficente em Portugal, viu a cara que Zidane fez quando o cumprimentou em campo. “Quem é esse velho?”, era o que a expressão do craque francês dizia. Depois da partida, sentiu-se um verdadeiro jogador de futebol. Havia até comprado roupa Armani para a comemoração.
DESMITIFICANDO
É esse o grande mérito do filme de Faria Jr., diretor de Vinicius, que em 2005 levou 300 mil espectadores aos cinemas, um recorde entre os documentários pós-retomada do cinema nacional. Desmitifica o cantor e compositor, deixando-o muito próximo do espectador. Tomando como eixo a memória – a real e a imaginária – e como ela muda de perspectiva com a passagem dos anos, o filme, que tem previsão de estreia em 26 de novembro, reconta a trajetória de Chico na primeira pessoa.
O formato é convencional: ordem cronológica, imagens de arquivo – algumas raras, como a entrevista no desembarque em Roma e o show que fez com Caetano em Salvador, logo após a volta do exílio – e entrevistas com Miúcha, Wilson das Neves e Ruy Guerra, entre outros.
Amigos há muitos anos, Chico e Faria Jr. têm a mesma idade: 71 anos. O cantor, compositor e escritor (que é realmente o que ele se considera) recebeu o cineasta em sua casa. Entremeando as conversas, canções de diferentes fases são interpretadas por Ney Matogrosso (As vitrines), Milton Nascimento e Carminho (Sobre todas as coisas), Adriana Calcanhotto e Mart’nália (Biscate).
As canções não são colocadas ao acaso. Costuram as falas do Chico de hoje e o de ontem. Por exemplo: ele fala da dificuldade em ser aceito pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. É através da literatura que eles se acertam. O pai não se importava em ter um filho músico, ao contrário da mãe, Maria Amélia, que preferia vê-lo longe dos palcos.
Uma imagem de Memélia subindo ao palco para ver o filho, então alçado ao estrelato dos festivais com A banda, é bastante reveladora. Foi também com esse seu primeiro sucesso que Chico se relacionou com os grandes. “Eu queria ser Tom, Vinicius e um pouquinho de João Gilberto”, admite. Sempre teve dificuldade em letrar as músicas que Tom Jobim lhe enviava. Não se achava capaz. O maestro, mais tarde, disse que ficava com medo de enviar músicas demais para “não chateá-lo”.
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Pesquisou a fundo o destino do filho que Sérgio Buarque teria tido – e nunca conhecido – na Berlim de 1930. Seu irmão, Sergio Ernst, morreu em 1981. Foi um ator e cantor alemão. Em Berlim, Chico tenta cantarolar A banda em alemão. “Se essa música foi muito conhecida aqui, então de alguma maneira meu irmão me conheceu, não?”, comenta ele, como criança, para seu interlocutor.
É esse o retrato nada em branco e preto, mas repleto de cor, que o filme de Faria Jr. revela.
Três perguntas para...
Miguel Faria Jr., cineasta
Como foi o processo de filmagem?
De filmagem mesmo com o Chico foi uma semana, filmando o dia inteiro. Esse filme é meio sui generis, começou a partir de uma ideia, mas sem roteiro. Não podia escrever um roteiro e pedir para o Chico ser o personagem que estava na minha cabeça. Tinha que vir dele, que falava sobre um tema e eu ia para a edição e roteirizava. Depois de todas as entrevistas, já com o roteiro, voltei à casa dele umas duas ou três vezes para aprofundar alguns assuntos. Mas o filme foi meio que construído na edição.
Este é seu primeiro filme desde Vinicius. Como foi documentar um artista vivo e outro morto?
Vinicius cobria uma parte da história do Brasil por meio da música, dos anos 1920 até os 1960. Quis continuar essa história, mostrar as transformações na música que deram nessa geração espetacular do Chico. São dois filmes completamente diferentes, porque no primeiro você tem um final. É só memória mitificada de um compositor. Já o Chico está presente. O filme mostra um artista na maturidade, falando como pensa o Brasil, o mundo e a carreira. No caso do Chico, você está fazendo o filme o tempo inteiro, pois vai encontrando caminhos diferentes. Foi como se eu escrevesse um romance, pois não sabia o que iria acontecer.
Durante o processo do filme, que descobertas você fez sobre Chico Buarque?
Minha curiosidade maior era saber o que uma pessoa precisa fazer para ter uma obra literária e musical como a do Chico. Vi que ele leva a vida em função do trabalho. Faz aquilo 24 horas por dia, está disponível o tempo inteiro. Mas o trabalho que dá para fazer isso me surpreendeu. É como diz o Caymmi: “Todo mundo gosta de abará. Ninguém quer saber o trabalho que dá”.
* A repórter viajou a convite da Sony Pictures