“A nossa visão dos índios ainda é a de José de Alencar”, afirma Lúcia Murat, lembrando-se do autor de O guarani, clássico do romantismo escrito no século 19. “É mais cômodo ter uma visão romântica do que aceitar a realidade, que é sociedade em movimento”, acrescenta, criticando visões nostálgicas e idílicas das comunidades indígenas. Segundo ela, a idealização contrasta com o fato de os índios terem hoje televisão e computador, moram em vilas, usam roupas, vão a médico, estudam, jogam futebol. E perigosa, observa, já que alimenta o argumento de que, devido a esse cotidiano, não são mais índios, tecla repetida exatamente por quem é contra a resolução da questão fundamental: a demarcação de terras.
“Até pela convivência com as comunidades, sei que a situação atual é contraditória e fascinante”, continua Lúcia Murat, sem esconder que vê tudo com muitas dúvidas. “Senti que para fazer o filme tinha de me recolher à situação de cineasta. Sabia que estava diante de uma sociedade complexa, o que me colocou em situação de observadora. Não observadora neutra, o que não existe, mas com respeito pela cultura indígena, pela nossa história da qual os índios fazem parte e com o afeto por eles.” O filme nasceu, recorda, da constatação das enormes diferenças entre a situação atual da tribo e a que existia em 1999, quando filmou 'Brava gente brasileira' na mesma região.
O projeto original do documentário, conta Lúcia Murat, era “mais um filme melancólico sobre uma tribo em extinção”. Mas logo mudou de rumo. “Ao chegar, encontrei um processo de retomada de uma persona guerreira da tribo. Foi uma surpresa”, conta. “A resistência, a luta por direitos e melhorias nas aldeias – tudo isso tem crescido. A vida mudou. Precisamos encarar a realidade.” Para ela, motivo de satisfação foi observar crescimento populacional das aldeias, que fez o povo de 200 indivíduos chegar a 2 mil pessoas. “Hoje temos quase um milhão de índios no Brasil. A possibilidade de sobrevivência é muito maior, mas depende da demarcação de terras”, repete, explicando que se a condição dos Kadivéus é até boa, pois existem grupos que vivem situações muito difíceis.
A busca de registro dos novos tempos nas comunidades indígenas não foi nada fácil. A ideia de começar o filme com os índios vendo filmagens deles feitas há 20 anos não foi possível porque os fundamentalistas religiosos não permitiram projeção de imagens de índias com os seios nus. “Noventa e nove por cento dos índios hoje são evangélicos. Os religiosos faziam nas aldeias o que o poder público deixou de fazer”, observa a cineasta, situando a origem do poder. O que também não impede que as lideranças desenvolvam lutas políticas. Ademir Matchua, um cacique Kadivéu, evangélico, personagem do longa, que comandava negociação com fazendeiros e mesmo alguns protestos, foi ameaçado por suas posições e acabou assassinado, o que mostra que não dá para simplificar a questão da orientação religiosa.
Ficção e realidade
Lúcia Murat não esconde o gosto pela ficção, pela liberdade em todos os sentidos que ela oferece, mas a sedução pelo documentário vem por ser gênero, como ela diz, que traz a força do real. “Que, mesmo que a gente manipule um pouco, não pode ser apagada”, brinca. Todos os filmes dela, explica, são produto de pesquisa. Mas cada um pede algo específico. “Comecei a fazer 'Em três atos' muito irritada e o filme terminou lírico, muito construído, feito com rigor estético absoluto”, exemplifica, falando de um novo filme, já pronto, que se volta para as questões da velhice e morte, que começa carreira de festivais em breve.
É parte da linguagem dela, reconhece Murat, a atenção ao detalhe. “É no detalhe que está a sutileza da história toda. Não sou de grandes descrições panorâmicas”, justifica. A fama de diretora cuja obra fala sempre de mulheres e política é considerada por ela uma redução. “Sempre que lanço um filme vem esta história de que sou cineasta feminista e política. Sou mesmo, mas também sou mãe e avó”, ironiza. No entanto, ela não se furta de falar sobre o tema, e conta que o número de obras assinadas por mulheres caiu. “É problema mundial. Ainda vivemos em uma sociedade profundamente machista. À medida que a indústria se estabelece, voltamos ao padrão ‘normal’: mulher é secundário”, critica. “A situação vai mudar com a nova geração que está chegando com presença forte das mulheres.”
A produção regular – ela já assinou 10 longas – é produto de um ambiente democrático que trouxe estabilidade para o cinema nacional. “Sou pragmática. Sei adaptar os projetos, reduzir orçamentos. É outra maneira de exercer a criatividade”, ensina. “Claro que a gente fica triste por não conseguir certas coisas, mas às vezes a situação acaba sendo resolvida melhor do que o previsto”, reconhece. Desafio que, para ela, só vai ser resolvido com a criação de um circuito alternativo, a questão da distribuição em um contexto em que o cinema comercial anda expulsando das salas a produção cultural e levando os filmes de arte para circuitos fechados de TV e internet. “Todas as plataformas são interessantes, mas defendo que a sala do cinema não seja abandonada. Ela permite imersão no filme e liberdade de linguagem que, por exemplo, a TV não oferece”, argumenta.
PERFIL
Lúcia Murat é carioca e tem 66 anos, fez oposição à ditadura militar, foi presa e torturada. Ao sair da cadeia, procurando um modo de “superar a depressão e a sensação de derrota”, voltou-se para o jornalismo. E encontrou muitos amigos se dedicando ao cinema. Fez 'O pequeno exército louco' (1984), o primeiro de vários curtas, e não parou mais. “Fazer cinema alegra a gente”, garante. Os longas da diretora são 'Em três atos' (2016), 'A nação que não esperou por Deus' (2015), 'A memória que me contam' (2012), 'Uma longa viagem' (2011), 'Maré – Nossa história de amor' (2007), 'Olhar estrangeiro' (2005), 'Quase dois irmãos' (2004), 'Brava gente brasileira' (2000), 'Doces poderes' (1996) e 'Que bom te ver via' (1989).