A luz vermelha do “gravando” não se apaga. Diariamente, entre as 8h e as 22h, são seis estúdios em operação. “Se fossem 50 estariam do mesmo jeito”, acredita Valvênio Martins, sócio gestor da VOX Mundi Audiovisual, de São Paulo. Se é que sazonalidade fez parte do universo da dublagem brasileira na década de 1980, não deixou o menor rastro para os dias de hoje.
A combinação entre segmentação dos canais a cabo, a profusão de plataformas de exibição – streaming, vídeo sob demanda, etc. – e o crescente hábito do brasileiro em ver filmes dublados ainda no cinema são fatores que contribuíram para uma transformação radical desse mercado. Na dúvida, basta observar o roteiro das salas de exibição em Belo Horizonte.
O Estado de Minas percorreu alguns estúdios em São Paulo, um dos principais polos de dublagem do país, e verificou o quanto o momento ainda é de adaptação. Principalmente porque o número de profissionais dedicados a essa tarefa extremamente especializada não cresce na mesma proporção da demanda. É uma bola de neve. Quanto maior o volume, menos tempo para a entrega dos produtos e, claro, sinal amarelo para o resultado.
“São poucas as casas hoje que conseguem ter um tempo para assistir ao produto, fazer uma escalação detalhada e depois um trabalho de personagem”, conta a atriz e diretora Adriana Pissardini. É dela, por exemplo, a voz de Annalise Keating (Viola Davis) em How to get away with murder (2014) e Alicia Florrick (Julianna Margulies) em The good wife (2009). Como conta, a coisa anda tão acelerada que, às vezes, o episódio que vai ao ar às 19h é dublado na mesma tarde.
“Tem aspectos positivos e negativos. Hoje em dia, o mercado de dublagem é muito mais sólido. Mas, em função do volume, você vai perceber uma queda de qualidade”, afirma Wendel Bezerra, a voz de Bob Esponja e outros atores como Leonardo di Caprio em O homem da máscara de ferro (1998), por exemplo.
A primeira vez que Wendel emprestou a voz para um personagem ainda nem sabia ler. Ele nasceu em uma família de dubladores. Além dele, os irmãos Úrsula e Ulisses também são do ramo. Oficialmente, considera que começou a carreira em 1982, somando, portanto, 33 anos de dublagem. Observando a necessidade de formação de mão de obra, fundou a Universidade de Dublagem em 2008, em parceria com o irmão.
REPETIÇÃO A casa na Vila Madalena tem o espaço dividido entre as atividades formativas e o ritmo intenso de gravação. São três estúdios que não param, com trabalhos dos gêneros mais variados. Tem desenho animado, longas em animação, mangá e outros, inclusive games. “Tem pouco profissional com capacidade para fazer um produto bom”, observa Ulisses Bezerra. Segundo ele, somando o quadro de São Paulo e do Rio de Janeiro – os dois principais mercados do Brasil –, são cerca de 600 dubladores em ação. Considerando que as produções demandam, em média, de 40 a 50 atores, o índice de repetição é bastante alto. “Os distribuidores pedem novas vozes”, conta. O problema é que não se trata de um elenco de renovação tão fácil.
Para ser um dublador é preciso que o interessado seja um ator, com registro profissional na Delegacia Regional do Trabalho. Mesmo quem já trabalha com locução há anos necessita do documento. “Não basta ser ator. Tem que ser ator com especialização em dublagem. Tem que ter tido tempo e dinheiro para fazer curso”, ressalta a atriz Mabel Cezar.
Desde 1996, Mabel atua como dubladora, principalmente no Rio de Janeiro. É dela a voz em português da Luluzinha, da Minnie, da rainha Elinor de Valente (2012) e de várias personagens de Catherine Zeta Jones, Penélope Cruz, Taylor Schilling, a Piper de Orange is the new black (2013) e outras. Com essa experiência sabe que ainda assim não bastam cursos. É preciso vivenciar a prática. Pedir para assistir às gravações, se arriscar nos exercícios. “Como é algo muito específico, não acho que tenha dado tempo para que essas pessoas se especializassem da maneira que tem que ser”, afirma Mabel.
Para Ulisses Bezerra, embora não tenha um tempo-padrão – é uma carreira que depende de inúmeros fatores, inclusive sorte – a média é que em apenas entre três e cinco anos o profissional entre em atividade frequente. “Antes disso, faz o homem 1, o porteiro. Você vai se desenvolvendo e mostrando a qualidade. Se não mostra, não consigo entregar um papel maior”, afirma o diretor. Na Universidade de Dublagem há cursos para quem está começando e um módulo avançado. Nesse caso, são turmas restritas com, no máximo, cinco alunos.
MUTAÇÃO CONSTANTE
A evolução tecnológica transformou o trabalho dos atores que realizam a dublagem. Mercado de TV paga e novos formatos ampliaram demanda por profissionais especializados
“Trabalho de segunda a sexta, das 8h às 22h e às vezes aos sábados. Não dá para parar”, conta Felipe Grinnan, a versão brasileira de Ross (David Schwimmer) de Friends (1994-2004), Adrian Brody, Jake Gyllenhaal, entre outros. Há 20 anos na profissão, ele também percebe o quanto o cenário tem se transformado. “Antigamente, tinha desenhos dublados no cinema. Depois foram os filmes de herói e hoje tem quase tudo.”
Sandra Mara Azevedo que o diga. Ela estreou na função no final dos anos 1970. Na década seguinte, deu voz a uma das personagens mais marcantes da latinização da TV brasileira: a Chiquinha, de Chaves. Hoje, dedica-se ao filão dos reality shows. E são muitos. Só de Master chef tem o programa do Canadá e o da Austrália. Sem contar os documentários especializados em cartaz nos canais Discovery, History e outros.
Para Sandra, a maior diferença está na tecnologia. Quando fazia a Chiquinha, por exemplo, todos os atores dividiam o mesmo estúdio e as vozes eram gravadas em Betacam (um tipo de fita magnética profissional). Como não era possível separar as faixas de áudio, era preciso refazer toda a sonoplastia. “Por isso no Chaves tem aqueles passos falsos. Tinha que fazer tudo de novo”, lembra.
Hoje, no estúdio, a solidão impera. Cada um grava sua fala separadamente, acompanhado apenas de um diretor e um técnico. Em geral, o dublador fica à meia-luz com um olho no papel e o outro na tela. Tem acesso apenas às imagens do personagem que assumiu. A atenção se divide entre a entonação e os diferentes movimentos da boca. O idioma é imprescindível.
“Dublador é o ator na sua esfera mais estranha. Estou aqui em um ambiente que não tem nada a ver com aquele, diante de um microfone, preciso executar uma coisa que nunca ensaiei. É uma brincadeira de faz de conta. É meio louco”, brinca Felipe Grinnan. Nesse reino de faz de conta da dublagem, os beijos são na mão, os choros têm que ser verdadeiros e as cenas de sexo pedem cuidado especial para não ficar falsas.
Mesmo com todo o distanciamento que o estúdio de áudio impõe, Adriana Pissardini conta que às vezes é impossível ceder à emoção da personagem. No caso dela, quando fez Piaf – em interpretação magistral de Marion Cotillard – se entregou à criação da atriz francesa. “Tem obras que são fascinantes e que eu não tenho coragem de adulterar o que já está feito. Então, enquanto atriz, tento fazer o melhor, que é embarcar naquela emoção”.