Por Cléber Eduardo*
Por que Milton Gonçalves como homenageado da emblemática 10ª edição de um evento como a Mostra de Cinema de Ouro Preto (Cineop), diferenciado por seu empenho em construir e preservar, ano a ano, capítulos e aspectos relevantes da memória material e simbólica do cinema brasileiro? Talvez porque, convenhamos, dispense justificativas. Ou porque encontremos com facilidade uma série de razões a seu favor, não somente pela prolongada importância cultural e artística de seus mais de 50 anos de interpretações, mas também por sua consensual integridade como figura pública, consciente dos ecos de suas atitudes e posturas midiáticas, empenhado em assumir deveres em instituições e órgãos governamentais, fruto de seu desejo de transformação social e cultural. O fato de ser negro, como ator e cidadão, não passou em branco. Ele já se considerou em fala pública “um negro em movimento”, não um integrante de movimentos negros, e suas problematizações sobre o lugar periférico dos negros, não apenas nas políticas públicas, mas também nas representações simbólicas, sempre foram marcantes pela sobriedade crítica.
Milton não foi, por exemplo, protagonista frequente. Pelo contrário, na maioria de seus trabalhos, foi coadjuvante, sobretudo no cinema. Nenhum ator negro além de Grande Otelo, desde os anos 1940, teve carreira de protagonismos constantes. Lázaro Ramos, recentemente, foi exceção. Isso é parte de uma tradição nas representações narrativas, no cinema e na televisão, reflexo de uma sociedade miscigenada e cindida etnicamente a um só tempo. Apesar dos poucos protagonismos, Milton Gonçalves foi um dos principais atores negros brasileiros desde o fim dos anos 1950, em parte pela longevidade e pela quantidade de filmes, em parte pela expressividade de seus raros personagens centrais e de alguns coadjuvantes. Não teve a preferência do cinema novo, como Antonio Pitanga, mas apareceu rapidamente em um filme seminal do movimento, 5 x Favela, no episódio Couro de gato, de Joaquim Pedro de Andrade, como um dos donos de gatos roubados pela molecada. Era um personagem sem fala, que corria atrás do ladrão de bichanos (destinados a virar tamborim), até interromper a perseguição ao se deparar com o choque de classes: a madame, o chofer e a polícia atrás de outros moleques ladrões de gatos.
Se não foi tão solicitado pelos cineastas que estavam na dianteira do cinema novo, transitou por filmes nos anos 1960 e 1970 com teor social e narrativas criminais, como Cidade ameaçada (1960, de Roberto Farias), Mineirinho vivo ou morto (1967, Aurelio Teixeira), O anjo nasceu (Julio Bressane, 1969) e A rainha Diaba (Antonio Carlos da Fontoura, 1974), pérola que inaugura a edição da Cineop deste ano. Seus personagens nessas obras reveladoras dos humores da sociedade diante das diferenças sociais eram ladrões ou assassinos com a arma constantemente à mão e disposição para passar fogo em policial, bandido ou gente com posses para serroubada. Na maioria dos casos, sob a ditadura, apesar dela ou por conta dela. Embora tenha também encarnado alguns policiais e delegados, como em Lúcio Flávio e O beijo da mulher -aranha, de Hector Babenco, ou em Um trem para as estrelas, de Cacá Diegues, e embora tenha sido até presidente da República às voltas com terroristas colombianos em Segurança nacional, boa parte de seus personagens estiveram mesmo à margem da lei.
TRÊS MOMENTOS
Esses exemplos mostram que a representação dos personagens negros no cinema brasileiro refletiu, em cada filme e período, as visões dos segmentos sociais sobre as heranças da escravidão, com variações de enfoque de acordo com os olhares de produtores, roteiristas e diretores. Parte desse conjunto tendeu a ver o negro como vítima histórica ou como sintoma de uma distorção social, oscilando entre a “imagem passiva” e a “imagem-estigma”, entre a fraqueza e a deformação, ambas atreladas ao processo escravocrata.
O período da escravidão serviu como contingência histórica para alguns filmes, mostrando o negro alijado dos direitos trabalhistas, desprovido de remuneração e marcado pelas chibatadas. Também se mostrou a inserção na “casa branca” pelas portas dos fundos. Em ambos os segmentos, o “sim, senhor” está na ponta da língua. Há, porém, exceções. Uma delas é a visão sobre a escrava poderosa Xica da Silva, de Cacá Diegues, protagonizada por Zezé Mota, nos anos 1970, que, na pele da madame negra, altera o foco das relações de poder.
Confiança para os brancos da plateia, para os quais os filmes são endereçados, ao menos primordialmente. Está aí o ponto. Nunca os negros foram proponentes de projetos, diretores, produtores e roteiristas. Também raros foram os atores negros em papéis de protagonistas. Portanto, as representações de personagens negros no cinema brasileiro são representações desenvolvidas pelos brancos, com intenções assim ou assado, mas sempre pela perspectiva de fora, que lida com esse “outro” como um “outro” (de cor social de origem). Essa presença rara é reflexo do processo histórico. Os filmes com negros também.
A emblemática 10ª edição da Cineop tem como objetivo jogar luz sobre essa questão. Os filmes programados seguem uma ou outra vertente dessas representações. As ficções ambientadas em período anterior ou posterior à libertação dos escravos, mas com um aspecto em comum entre as obras distintas entre si: os personagens como negros como seres ativos, reativos, rebeldes e desobedientes. Essa desobediência social e legal, que rejeita um lugar e um comportamento impostos de antemão pelos brancos, não é julgada nociva nos filmes. A reação às vezes dura e violenta tende a ser legitimada como único modo de afirmação possível. Uma afirmação pela reação.
Uma positividade, dependendo da perspectiva, pela negatividade. Porque o lugar quase exclusivo do personagem negro propositivo, no cinema brasileiro, é o lugar associado à marginalidade e ao crime, em alguma medida. Negro bom é aquele com arma na mão ou punhos cerrados. Se aos poucos as discussões sobre os direitos cívicos e os prejuízos históricos dos negros ganham espaço ampliado, não apenas por dentro das representações narrativas, mas também a partir de uma contextualização social, há ainda muito a ser colocado em palavras e imagens, ao menos se não aceitarmos o mito da cordialidade brasileira como regra única de entendimento do país e de suas representações cinematográficas.
*Cleber Eduardo é crítico de cinema e curador da temática histórica da 10ª Cineop – Mostra de Cinema de Ouro Preto