Distrito de Nova Friburgo, São Pedro da Serra é um lugarejo fluminense onde vivem não mais do que três mil pessoas. No fim da década de 1990, um dos moradores era Rodrigo Garcia. Amigo de Cássia Eller, com quem já havia tocado, o violonista recebeu a cantora e sua banda num fim de semana. Depois de quase 10 anos de carreira, Cássia havia alcançado sucesso popular com o álbum Com você... meu mundo ficaria mais completo (1999). Os shows ficaram maiores, mas ela preferia espaços menores, onde podia se misturar com o público.
À revelia do empresário Leonardo Netto, a cantora resolveu apresentar um show no clube de São Pedro da Serra. Em cartazes feitos à mão, foi anunciada a apresentação do trio Come Água. Eles até tocavam forró, mas, de trio, a banda de Cássia Eller não tinha nada. Com os trocados recebidos, o grupo pagou o jantar e foi embora.
Aquela noite – que ganhou repeteco ao longo de 1999 e 2000 em outros clubes perdidos do interior do Brasil – só fez parte da vida da pequena plateia que, acidentalmente, assistiu a Cássia no topo e sem qualquer amarra. Paulo Henrique Fontenelle tomou conhecimento dessa história há quatro anos, quando viajou com a banda da artista para uma homenagem que seria feita para ela em Maceió. “Aquilo me deixou fascinado. Uma cantora, no auge da fama, fugir do empresário, ir para o interior e fazer show a R$ 3 resume o prazer do palco”, diz o documentarista, de 44.
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Há 15 anos, morria Cássia Eller; relembre trajetória da cantora
FAMA Cássia Eller foi a cantora mais importante surgida nos anos 1990. “Antitudo”, como bem determinou o álbum Veneno antimonotonia (1997), ela sempre fez o que quis. Fumou, bebeu, usou drogas, transou com quem lhe deu vontade. Acidentalmente, mas com muito querer, gerou um garoto que não teve pai, mas duas mães. No entanto, também teve o que não quis. A fama, que nunca almejou, levou-a para terrenos desconfortáveis, como a vida pública e a obrigação de abrir a boca para falar de si. Todas essas questões foram exploradas à exaustão depois de sua morte inesperada, em dezembro de 2001.
A guarda do filho Francisco, na época criança, virou debate nacional: de um lado, Maria Eugênia Vieira Martins, a companheira de uma década e meia que criava o menino; do outro, o avô paterno Altair Eller, com quem ele tinha pouco contato. Com parca bibliografia – dois livros foram publicados depois de sua morte: Canção na voz do fogo (2002), de Beatriz Helena Ramos Amaral, em tom mais de perfil, e Apenas uma garotinha (2005), de Ana Claudia Landi e Eduardo Belo, esgotado – e um musical, a cantora merecia um retrato mais humano, que fugisse de todos os estereótipos que lhe cunharam em vida.
Convencional na forma, Cássia Eller aposta no esquema imagens de arquivo, registros em off e depoimentos de amigos (Zélia Duncan e Nando Reis) e familiares (a mãe, Nancy e o tio Anderson, seu primeiro empresário). A ousadia ficou para a própria biografada, aqui tanto em imagens conhecidas – os peitos de fora no Rock in Rio, as entrevistas tatibitate –, como em registros caseiros, alguns inéditos – a vida em família – ou pouco conhecidos, como a carreira em Brasília, antes da fama.
“O orçamento era pequeno, R$ 250 mil, R$ 300 mil, então, não tinha como inventar demais. Pensei em outras opções, como fazer a história dela através do Chicão (o filho), ou um show em que se tentasse encontrar a Cássia”, conta Fontenelle, que entrevistou 40 pessoas e trabalhou com 400 horas de imagens. Ao contrário da experiência anterior com Arnaldo Baptista em Lóki, ele admite ter sentido dificuldade em se relacionar com um personagem que não estava mais presente.
“A partir da convivência com o Arnaldo, pude criar situações durante a filmagem. Como não havia essa possibilidade com a Cássia, acabei fazendo uma entrevista que levava a outra. O filme é a minha própria investigação de quem foi Cássia Eller. O grande público nunca soube quem era ela. Então, quis buscar esse lado sem ter preocupação em fazer polêmica. Pra mim, a essência da Cássia é a grande revelação”, conclui Fontenelle.
Tímido de doer
O mesmo Rodrigo Garcia de São Pedro da Serra (RJ) é o sócio de Francisco Eller (foto) e Maria Eugênia Martins no selo Porangareté. Este ano, estão previstos dois lançamentos: um disco póstumo de Cássia, criado a partir da recuperação de fita cassete que ela gravou aos 20 anos para a então namorada (o repertório tem Beatles, Ednardo, Billie Holliday e Roberto e Erasmo), e o CD de Chicão. Aos 21 anos, estudante de geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF), o filho de Cássia Eller é compositor, violonista e cantor. Encabeça o projeto 2 X 0 Vargem Alta, que lança seu primeiro disco no meio do ano. Sete faixas estão disponíveis no endereço soundcloud.com/2-x-0-vargem-alta. Entre as canções, há instrumental, rock rural e blues. Com atenção, ouvem-se alguns ecos de Cássia Eller na interpretação. Parecido fisicamente com a mãe, Chicão também é bem tímido. “Fazer mais de uma frase é complicado”, admite ele para a câmera de Fontenelle.
Três perguntas para...
Maria Eugênia Vieira Martins
Servidora pública
Antes e depois da morte de Cássia Eller, você sempre manteve a discrição sobre sua vida com ela. Por que você participa tão ativamente do documentário, cedendo material e abrindo sua própria casa?
Na verdade, queria que houvesse uma homenagem à Cássia, que os outros pudessem conhecer a pessoa maravilhosa que ela foi – não só a Cássia Eller artista sapatão que mostrava o peito no palco. Tive experiências (com outros produtos) não muito agradáveis porque não participei deles. Se tivesse contribuído, os livros teriam sido melhores. Também faço restrições ao roteiro do musical (Cássia Eller, já apresentado em BH e em cartaz em Brasília), mas gosto muito da parte musical, a Tacy (de Campos, que interpreta a cantora) impressiona muito. Quando recebi o e-mail do Paulo Fontenelle, resolvi conversar com ele porque conhecia o Lóki, um cartão de apresentação muito bacana.
Como foi o processo de rever sua própria vida nesse filme?
É estranho as pessoas entrando na sua casa com milhões de equipamentos. Filmagem não é coisa de duas, três horas, e isso ocorreu umas quatro vezes. O próprio depoimento foi a coisa mais difícil. A Cássia adorava uma câmera. Ela se saía muito bem, não com as palavras, mas com o corpo, a voz. Adorava fazer imagens, o difícil para ela era falar. Já eu sou o contrário. Converso muito no telefone, mas, se apontam uma câmera na minha cara, fico nervosa. O resultado desse produto, ainda que o processo tenha sido complicado, foi libertador.
Francisco alcançou a maioridade, tão discutida quando Cássia morreu. Olhando para trás, o que foi mais complicado?
O processo da guarda foi bastante tenso, mas também houve o da subsistência. A Cássia era provedora da nossa família. Eu não trabalhava, estava estudando quando ela morreu. Com os bens todos bloqueados, havia um grande ponto de interrogação. Até terminar o curso (de nutrição), vivemos durante um tempo da boa vontade da família e dos amigos. A partir de 2005, quando me tornei servidora pública federal (Eugênia trabalha na Agência Nacional de Vigilância Sanitária), as coisas foram entrando nos eixos. Mas fiquei um período meio deprimida, na época em que consegui sentir um pouco o que aconteceu. Foi quando caiu a ficha.