A pobreza apresentada pela ótica da pobreza. A pobreza da falta de horizonte num horizonte tão lindo, azul: idílico. Se a miséria foi retratada no cinema brasileiro por suas consequências, que aferimos pelo termômetro da violência, ela ganhou na película de Gabriel Mascaro um tom tão real quanto distante. Real porque apresenta a pobreza não apenas pelo viés da falta de acesso às condições materiais mínimas, mas porque mostra que a pobreza eclipsa a beleza, torna a vida monótona, isola e segrega. Distante porque fala da pobreza dos que moram na beleza longe dos centros urbanos, nas praias de um mar sem limites, mas que não apenas são esquecidos pelo Estado - ausente mesmo na morte, na entrega de um corpo, estrangeiramente branco - como são a parte incômodada paisagem das praias. Basta um único cruzamento da pobreza com os turistas para que os olhares que podem acessar à beleza do local, o olhar dos turistas, ricos turistas, se mostrarem desconfortáveis. Desconforto inesperado e rápido. Os barcos continuam seus caminhos. Caminhos inversos. Um para ratificar a ausência completa do Estado, o barco remendado e que leva o cadáver. Outro, o barco dos turistas, para desfrutar da beleza que para a pobreza local é fardo, rotina, dificuldades e risco, muitas vezes seguido de morte, de mergulhar para trazer alimentos para os turistas. O mar que torna tudo igual no filme. O mar que dá o mesmo tom para um símbolo da cidade, o skate, que segue o movimento repetido do mar numa cena que inquieta pela simplicidade do seu movimento. A personagem sobre o skate só sai do lugar para voltar para o mesmo lugar. Continua repetindo gerações de monotonia.No máximo, escuta-se, na mesma cena do skate, no fundo, o som dos veículos, que aparecem também no fundo e mostram a única saída, utópica.
A pobreza que vê no mar as dificuldades do cotidiano; a morte sem explicação que o mar carrega sem explicar. O mar tão conhecido para a pesca quanto desconhecido do ponto de vista de seu conhecimento geológico, científico. Pedras respiram. Diz a pobreza para o estranho que registra o vento. Apenas o vento. E que por estar lá termina anônimo como todas as pessoas do lugar. Morre de mar. Mar que alimenta os vivos da localidade, não por lhe fornecer comida, mas comércio - os alimentos pescados não são consumidos - e que arrasta o resto dos mortos para si mesmo, para dentro de si. Sem poder mudar a paisagem - repito, linda paisagem - e a vida a solução da personagem é cuidar dos mortos. Refazer o cemitério, ainda que em vão porque o mar continua a sua vida de destruição.
O filme mostra que não há beleza para os olhos que são ofuscados por tanta miséria. Não existe beleza na pobreza para a pobreza. Cada cena bonita é seguida de um estrondo para que nosso olhar não se fixe na beleza do cenário, mas na pobreza. Trata-se de uma forma de treinar nosso olhar esteticamente classe média para a pobreza não pasteurizada pela novelas ou uniformizadas pela violência urbana. Do mar, olhos apenas para a violência das ondas. Dos coqueiros, olhos apenas para um emprego desqualificado de tirar e levar côco - estranhamente hierarquizado, quem dirige o caminhão não pega côco, nem os descarrega. Da educação escolar, resta apenas uma carona que mostra para as crianças da escola o destino delas: pescadores, empregas e, no máximo, motoristas. A beleza do cartaz do filme é um convite para que nossos olhos esteticamente classe média possam perceber a ótica dos que não têm acesso à perceber beleza, a beleza do mar e a sua própria beleza. Em uma palavra, os excluídos.
* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco: ericoandrade@gmail.com