Por mais que o brasileiro tenha introduzido o sexo e o sincretismo religioso no cinema de terror feito mais recentemente no país, não dá para ignorar a produção da Boca do Lixo, em São Paulo, principalmente a partir dos anos 1970/1980. A constatação é do pesquisador Carlos Primati, participante da mostra 'Medo e delírio no cinema brasileiro contemporâneo', que estreia nesta sexta-feira no Cine Humberto Mauro.
Iniciativa do jornalista, crítico, professor e curador Marcelo Miranda, a mostra vai exibir 23 longas-metragens e 15 curtas durante 10 dias, a maioria deles com elementos de terror, suspense, policial ou do chamado “terrir” – gênero criado pelo diretor carioca Ivan Cardoso que mistura, oportunamente, terror e comédia. Duas palestras e um debate estão na agenda.
Para o curador Marcelo Miranda, o terror talvez seja o gênero que mais apaixona os cinéfilos, obcecados por filmes e seus ídolos. Que o diga José Mojica Marins, diretor e protagonista de 'À meia-noite levarei sua alma' (1964), o primeiro longa brasileiro do gênero. Foi assim que o personagem Zé do Caixão, como se tornou popularmente conhecido José Mojica, estreou nas telas.
“Cinema de horror: das origens ao abrasileiramento” é o tema da palestra do pesquisador Carlos Primati sobre o gênero surgido na França, mas que só passaria a ser reconhecido como tal na Alemanha dos anos 1920. “O terror surge já no comecinho do cinema, em 1896, quando o francês Georges Méliès (1861-1938) fez 'A mansão do diabo'”, acrescenta. Demorou pelo menos 15 anos para que ele fosse transformado em gênero cinematográfico.
Na década de 1920, com o expressionismo alemão, vieram às telas clássicos como 'O gabinete do dr. Caligari', de Robert Wiene, e 'Nosferatu, uma sinfonia de horrores', de Friedrich Wilheim. Coube a Hollywood definir as regras do gênero, com sua produção intensa. Luiz de Barros (1893-1982), que inaugurou o cinema sonoro no Brasil, foi responsável por um dos primeiros filmes a abordar o tema no país: a produção cearense 'O jovem tataravô' (1936). “O gênero já chegou aqui no estilo esculhambação”, observa Carlos Primati.
De acordo com o especialista, José Mojica Marins se diferencia conceitualmente dos colegas por assumir que faz horror nas telas, adaptando-se às regras do cinema de terror. “Nos filmes dele há o confronto, o desenvolvimento do monstro”, justifica. “Ele é a figura mais importante do gênero no Brasil, que prospera nos anos 1960 até a primeira metade dos anos 1970, atingindo o auge a partir de então”, lembra. Primati destaca a presença do argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999) no país, com filmes como 'Enigma dos demônios' e 'Mulher do desejo'.
Na década de 1970, muitos filmes foram feitos no mundo inteiro sob influência do fenômeno 'O exorcista' (1973), do diretor William Friedkin. Trata-se do produto mais lucrativo do gênero. Em 1974, José Mojica Marins lançou 'Exorcismo negro'. Tentou lançá-lo no país, mas teria sido impedido pela Warner.
Carlos Primati diz que dois elementos – sincretismo religioso e erotismo – acabaram abrasileirando o cinema de terror. “Na verdade, os filmes passam a ficar mais eróticos do que assustadores”, explica.
A expectativa do pesquisador é boa. Principalmente a partir do crescimento do cinema independente via Paraná, Espírito Santo e do eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Vale lembrar: a TV a cabo vem exibindo produções do gênero e canais abertos se abriram a ela. A Rede Globo, por exemplo, está exibindo séries como Dupla identidade, de Glória Perez.
MEDO E DELÍRIO NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Sexta-feira
17h – 'A menina do algodão', de Kleber Mendonça Filho e Daniel Bandeira. 'O fim da picada', de Christian Saghaard
19h – 'Um ramo', de Juliana Rojas e Marco Dutra. 'Corpo', de Rubens Rewald e Rossana Foglia
21h – 'Abertura oficial'. Sexta-feira da paixão, de Ivo Costa, e 'Encarnação do demônio', de José Mojica Marins.
. Até 2 de novembro. Cine Humberto Mauro, Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro. Entrada franca. Informações: (31) 3236-7400. Programação completa: www.fcs.mg.gov.br
Entrevista
Rodrigo Aragão
cineasta
‘‘Terror é nobre”
O diretor capixaba Rodrigo Aragão, de 37 anos, chama a atenção em festivais internacionais dedicados ao cinema indie de terror. Ele lançou 'Mangue negro' (2008), 'A noite do chupacabras' (2011) e 'Mar negro' (2013), que será exibido domingo, às 18h, no Cine Humberto Mauro. Seu estúdio fica na Praia de Perocão, a 10km de Guarapari, onde ele nasceu.
Por que fazer cinema de terror no Brasil?
Porque sou um brasileiro apaixonado pelo gênero e reconheço o grande potencial de nosso folclore e literatura fantástica, uma das mais ricas do mundo. É inacreditável que ainda não tenhamos feito clássicos mundiais no cinema.
Que tipo de preconceito você costuma enfrentar?
O pior preconceito é justamente o da máquina de cinema brasileiro. Projetos de terror não costumam passar por comissões julgadoras de leis de incentivo, mesmo montando ótimas propostas e sabendo que há uma legião de fãs. O gênero não é levado a sério pelo sistema. Espero que isso mude.
O que precisa ser feito para mudar essa realidade?
Que se entenda o terror como um gênero nobre e extremamente difícil de ser produzido. Precisamos de um cinema de gênero original, tropical, latino e orgulhoso de ser brasileiro. Então poderemos encantar o mundo.
Iniciativa do jornalista, crítico, professor e curador Marcelo Miranda, a mostra vai exibir 23 longas-metragens e 15 curtas durante 10 dias, a maioria deles com elementos de terror, suspense, policial ou do chamado “terrir” – gênero criado pelo diretor carioca Ivan Cardoso que mistura, oportunamente, terror e comédia. Duas palestras e um debate estão na agenda.
Para o curador Marcelo Miranda, o terror talvez seja o gênero que mais apaixona os cinéfilos, obcecados por filmes e seus ídolos. Que o diga José Mojica Marins, diretor e protagonista de 'À meia-noite levarei sua alma' (1964), o primeiro longa brasileiro do gênero. Foi assim que o personagem Zé do Caixão, como se tornou popularmente conhecido José Mojica, estreou nas telas.
“Cinema de horror: das origens ao abrasileiramento” é o tema da palestra do pesquisador Carlos Primati sobre o gênero surgido na França, mas que só passaria a ser reconhecido como tal na Alemanha dos anos 1920. “O terror surge já no comecinho do cinema, em 1896, quando o francês Georges Méliès (1861-1938) fez 'A mansão do diabo'”, acrescenta. Demorou pelo menos 15 anos para que ele fosse transformado em gênero cinematográfico.
Na década de 1920, com o expressionismo alemão, vieram às telas clássicos como 'O gabinete do dr. Caligari', de Robert Wiene, e 'Nosferatu, uma sinfonia de horrores', de Friedrich Wilheim. Coube a Hollywood definir as regras do gênero, com sua produção intensa. Luiz de Barros (1893-1982), que inaugurou o cinema sonoro no Brasil, foi responsável por um dos primeiros filmes a abordar o tema no país: a produção cearense 'O jovem tataravô' (1936). “O gênero já chegou aqui no estilo esculhambação”, observa Carlos Primati.
De acordo com o especialista, José Mojica Marins se diferencia conceitualmente dos colegas por assumir que faz horror nas telas, adaptando-se às regras do cinema de terror. “Nos filmes dele há o confronto, o desenvolvimento do monstro”, justifica. “Ele é a figura mais importante do gênero no Brasil, que prospera nos anos 1960 até a primeira metade dos anos 1970, atingindo o auge a partir de então”, lembra. Primati destaca a presença do argentino Carlos Hugo Christensen (1914-1999) no país, com filmes como 'Enigma dos demônios' e 'Mulher do desejo'.
Na década de 1970, muitos filmes foram feitos no mundo inteiro sob influência do fenômeno 'O exorcista' (1973), do diretor William Friedkin. Trata-se do produto mais lucrativo do gênero. Em 1974, José Mojica Marins lançou 'Exorcismo negro'. Tentou lançá-lo no país, mas teria sido impedido pela Warner.
Carlos Primati diz que dois elementos – sincretismo religioso e erotismo – acabaram abrasileirando o cinema de terror. “Na verdade, os filmes passam a ficar mais eróticos do que assustadores”, explica.
A expectativa do pesquisador é boa. Principalmente a partir do crescimento do cinema independente via Paraná, Espírito Santo e do eixo Rio de Janeiro/São Paulo. Vale lembrar: a TV a cabo vem exibindo produções do gênero e canais abertos se abriram a ela. A Rede Globo, por exemplo, está exibindo séries como Dupla identidade, de Glória Perez.
MEDO E DELÍRIO NO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Sexta-feira
17h – 'A menina do algodão', de Kleber Mendonça Filho e Daniel Bandeira. 'O fim da picada', de Christian Saghaard
19h – 'Um ramo', de Juliana Rojas e Marco Dutra. 'Corpo', de Rubens Rewald e Rossana Foglia
21h – 'Abertura oficial'. Sexta-feira da paixão, de Ivo Costa, e 'Encarnação do demônio', de José Mojica Marins.
. Até 2 de novembro. Cine Humberto Mauro, Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro. Entrada franca. Informações: (31) 3236-7400. Programação completa: www.fcs.mg.gov.br
Entrevista
Rodrigo Aragão
cineasta
‘‘Terror é nobre”
O diretor capixaba Rodrigo Aragão, de 37 anos, chama a atenção em festivais internacionais dedicados ao cinema indie de terror. Ele lançou 'Mangue negro' (2008), 'A noite do chupacabras' (2011) e 'Mar negro' (2013), que será exibido domingo, às 18h, no Cine Humberto Mauro. Seu estúdio fica na Praia de Perocão, a 10km de Guarapari, onde ele nasceu.
Por que fazer cinema de terror no Brasil?
Porque sou um brasileiro apaixonado pelo gênero e reconheço o grande potencial de nosso folclore e literatura fantástica, uma das mais ricas do mundo. É inacreditável que ainda não tenhamos feito clássicos mundiais no cinema.
Que tipo de preconceito você costuma enfrentar?
O pior preconceito é justamente o da máquina de cinema brasileiro. Projetos de terror não costumam passar por comissões julgadoras de leis de incentivo, mesmo montando ótimas propostas e sabendo que há uma legião de fãs. O gênero não é levado a sério pelo sistema. Espero que isso mude.
O que precisa ser feito para mudar essa realidade?
Que se entenda o terror como um gênero nobre e extremamente difícil de ser produzido. Precisamos de um cinema de gênero original, tropical, latino e orgulhoso de ser brasileiro. Então poderemos encantar o mundo.