Alguns se salvam, muitos se perdem. 'Na quebrada', primeiro longa-metragem de ficção de Fernando Grostein Andrade, que estreia nesta quinta-feira em 200 cinemas de todo o país, não tem a pretensão de mudar o mundo. Mas busca mostrar que quando existe opção, há como encontrar uma saída. Com roteiro nascido a partir de depoimentos reais, cruza a trajetória de cinco jovens que vivem em comunidades na periferia de São Paulo: Zeca sobreviveu a uma chacina; Gerson vive com a mãe, já que o pai está preso desde que ele se conhece por gente; diferentemente de seus pais e irmão, Mônica sofre e, ao mesmo tempo, fica aliviada por isso; oprimido pelo pai, Júnior é fascinado por aparelhos eletrônicos; e Joana, que tem como referência a rua, sonha com a mãe que nunca teve. Em meio aos seus próprios dramas, os garotos têm que conviver, ainda que involuntariamente, com a marginalidade. No meio do caminho, os cinco se deparam com uma ONG que ensina os primeiros passos para o universo do audiovisual.
Não quis dar nenhuma solução definitiva, e sim mostrar o poder transformador da arte, cultura e educação”, afirma Fernando, que começou a desenvolver o longa a partir de sua experiência no curta 'Cine Rincão' (2011). Exibido no Festival de Veneza, o curta foi realizado para um projeto da revista italiana 'Colors' (iniciativa da marca Benetton) sobre iniciativas que tentavam desafiar a injustiça social em zonas de conflito armado. 'Cine Rincão' retratava a vida de um jovem da ONG Instituto Criar de TV, Cinema e Novas Mídias, fundada pelo apresentador e empresário Luciano Huck, irmão de Fernando. Huck é um dos produtores de Na quebrada.
“Tenho algumas paixões que acabam ficando claras nos meus filmes. Uma delas é a lucidez combatendo as trevas. Em 'Coração vagabundo' era o provincianismo versus o cosmopolitismo, com a mensagem do Caetano que dizia que não importa onde você vá, tem que abrir a cabeça. Já em 'Quebrando o tabu' apresentamos medidas pragmáticas e não moralistas. É impossível radicar o tráfico, qualquer cidade do mundo tem. Mas há como prevenir o aumento do consumo por meio da educação. E quando há a interseção entre educação e cultura, você pode ajudar a prevenir algo mais grave do que a experimentação ocasional de drogas, que é a marginalização, essa a grande questão do tema”, afirma Fernando
Por meio da ficção, que bebe muito na realidade, 'Na quebrada' traz essas questões à tona. A inclusão social, um dos vértices do debate proposto pelo cineasta, está presente não só dentro da tela, como fora dela. O codiretor do longa é Paulo Eduardo, formado na primeira turma de edição do Instituto Criar. Vinte e cinco alunos e ex-alunos da ONG também participaram do projeto. O elenco principal é formado por jovens que até então nunca haviam atuado no cinema – a exceção é o ator Jean Luis Amorim, protagonista de 'Capitães de areia' (2011). Todos os detentos, traficantes e policiais foram interpretados por detentos que integram o grupo de teatro Do Lado de Cá, da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Desativado até então, o projeto voltou à ativa por causa do filme.
Dois filhos de Brown
Jorge e Domênica, de 18 e 15 anos, filhos de Mano Brown, líder dos Racionais MCs, estão no elenco principal de 'Na quebrada'. Eles vivem Gérson e Mônica, dois garotos que entram para a ONG do filme. Ambos sem experiência alguma com cinema, chegaram até a produção graças à mãe, Eliane Dias, que conheceu Fernando Andrade numa palestra. “Nem queria fazer o teste, foi minha mãe quem falou para eu fazer. Nunca atuei na vida, mas quando comecei a preparação, tomei gosto”, assume Jorge. Domênica, que na época das filmagens tinha apenas 13 anos, já levava jeito para a coisa. “Indicaram meu grupo de teatro (que atua no Centro Cultural Monte Azul, Zona Sul de São Paulo) para o teste”, conta.
Moradores da Zona Sul, assim como os personagem do filme (vivem com os pais numa região entre o Campo Limpo e o Capão Redondo), Jorge e Domênica veem muito da vida real no filme. “Na periferia tem muito Gérson. Ele foi convocado (pelo tráfico), ameaçado e não conseguiu sair. Conheço muitas histórias parecidas com a dele. Mas tem gente que mesmo com o pai preso não segue o mesmo caminho. Ou que começou pelo errado e conseguiu se direcionar pelo esporte ou pela arte”, diz Jorge. E acrescenta: “Aqui tem certa disciplina, não tem morte como antes. A violência não vem do bandido, o medo é da polícia. Hoje mesmo, minha mãe ligou dizendo para eu tomar cuidado na rua pois viu o (Batalhão de) Choque abordando dois jovens.”
Para a garota, que vai continuar estudando teatro, mas também tentar um curso de cinema – “a atuação é muito diferente nas duas áreas” – o mais importante de 'Na quebrada' foi o envolvimento das pessoas. “É um filme que transformou quem participou dele. Tanto para a gente, que nunca tinha feito nada, quanto para os detentos, que têm agora outra perspectiva.” Se há muito interesse dos irmãos pelo cinema, não há nenhum pelo hip-hop. “Não, não. Gosto de teatro e moda, nunca quis experimentar a música”, fala Domênica. “Só trabalho como produtor para o Mano Brown e os Racionais. Fora isso, quando era bem pequeno, cantei num grupo de rap com meu primo, mas nada de mais. Nunca tive vontade”, assume Jorge, que é a cara do pai. O garoto ri da comparação. “O pessoal fala, né?! Não tem como esconder.”
Assista ao trailer do filme: