O cineasta Jorge Bodanzky, autor de Iracema — Uma transa amazônica, voltou a Brasília recentemente para um reencontro. No palco do Cine Brasília, enquanto fazia as apresentações do curta-metragem da competitiva, Crônicas de uma cidade inventada, a diretora brasiliense Luísa Caetano entregou um filme perdido do colega paulista. Os caminhos de Valderez, o primeiro curta-metragem assinado por Bodanzky no período em que foi aluno da Universidade de Brasília (UnB), na década de 1960, estava desaparecido e foi encontrado na gaveta de um móvel antigo na casa da tia de Luísa, Valderez Caetano, protagonista da película universitária de Bodanzky.
Não foi o primeiro reencontro do cineasta paulistano com seu passado vivido em terras brasilienses. Ele foi aluno da primeira turma do Instituto de Artes da UnB, onde teve lições com Jean-Claude Bernardet, Paulo Emílio Salles Gomes, Athos Bulcão e o fotógrafo Luís Humberto. Foi embora da cidade logo depois da primeira demissão coletiva de professores da UnB, em 1965, decisão forçada pela perseguição ideológica do golpe militar.
No período em que viveu aqui, Bodanzky andava por uma Brasília pouco habitada, captando imagens em preto e branco da nova capital. Terminou por presenciar os dias que se seguira à ascensão do governo militar e a interrupção do regime democrático no Brasil. O registro fotográfico do período foi reunido numa exposição, gerida pelo Instituto Moreira Salles e chamada Em 1964 (deverá passar por Brasília no ano que vem , com uma mostra de filmes de Bodanzky no Cine Brasília).
Há alguns anos, o cineasta trabalha na produção de um documentário sobre a experiência de ter vivido em Brasília durante a criação da UnB — feita por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. O filme ainda não tem previsão de finalização, mas sempre que pode Bodanzky, se reencontra com colegas e professores para tentar narrar a interrupção de um projeto educativo que ele mesmo classifica como “método holístico de educação”.
Prostituição na Amazônia
Bodanzky trabalhava como fotógrafo com uma equipe de jornalistas alemães registrando a construção da Belém-Brasília, quando se sentou para observar a movimentação em um posto de gasolina. Na década de 1970, o governo militar espalhava uma ideologia de progresso, de milagre econômico. A ideia de narrar esta história por meio de dois personagens: o caminhoneiro Tião “Brasil Grande” (Paulo César Pereio) e uma prostituta juvenil de descendência indígena, Iracema (Edna de Cássia) apareceu na beira da estrada, enquanto o fotógrafo observava meninas imberbes vendendo sexo nas rodovias.
Para convencer os produtores alemães, Bodanzky, mais o roteirista Orlando Senna, viajaram de São Paulo para a Amazônia a bordo de um Fusca, carregando uma câmera Super 8 para registro de imagens. A força da história que o diretor pretendia narrar foi aprovada na Alemanha.
Uma equipe pequena, ocupando uma Kombi, voltou à floresta para a produção de uma película realizada em 20 dias. O filme Iracema — Uma transa amazônica foi finalizado em 1971 e transmitido por um canal alemão no mesmo dia em que uma forte nevasca cancelou a transmissão de um jogo de futebol. A audiência foi enorme e Iracema foi convidado para passar no Festival de Cannes.
Quando finalmente foi exibido no Brasil, em 1980, a saga amazônica levou os prêmios de melhor filme, atriz (Edna de Cássia), atriz coadjuvante (Conceição Senna) e montagem no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
ENTREVISTA / Jorge Bodanzky
Você fez muitos roadmovies na carreira sendo Iracema o principal deles. Por quê?
A minha vida é um roadmovie. Aliás, a vida de todo mundo, não? Tem de se estar sempre em movimento. Cada um trabalha com a sua realidade, não é?
Iracema foi revisto no festival de Brasília, 34 anos depois de vencer no próprio festival. Qual foi sua impressão ao ver o filme de novo junto do público?
Foi muito bom rever, o Iracema passou em blu-ray muito bem projetado. Gostei muito de como esse longa bate hoje. Eu o projetei para a Associação de Prostitutas do Pará, e o filme foi debatido no fim da sessão. Iracema foi discutido por tantos aspectos, mas nunca havia sido discutido pelo principal, a prostituição. As prostitutas contaram histórias muito parecidas com a história de Iracema. Todas são Iracemas da vida. Meninas violentadas que fugiram de casa e entraram para a prostituição. Contei isso num extra de 10 minutos que será lançado com o DVD pelo Instituto Moreira Salles provavelmente em dezembro. O filme é de uma estranha e triste atualidade. Praticamente tudo que o filme coloca está pior.
Teve essa impressão?
Impressão não. Eu tive certeza. A questão do desmatamento, a ocupação da terra, o trabalho escravo ou a prostituição. Todos os temas do filme estão hoje mais complexos e maiores. É uma triste constatação de que na Amazônia as coisas só pioraram. Só tem uma coisa que mudou. A organização da sociedade civil. Na época do filme, era o período da ditadura, e a sociedade civil não tinha menor condição de se organizar. Hoje está razoavelmente organizada. Até as prostitutas têm uma associação. Isso evoluiu, mas ainda vai levar muito tempo para que eles tenham poder de atuação efetivo.
A história de produção de Iracema é a de um cinema feito com poucos recursos e muita fibra. Alguma nostalgia desse tempo do cinema brasileiro sem grandes orçamentos?
Bom, eu nunca trabalhei em grandes projetos. Sem exceção. É meu jeito de fazer cinema. Não sou contra os editais. Eles são uma maneira extremamente democrática de se obter recursos. Mas a burocracia engessa a produção dos diretores. Muitos terminam por enquadrar seus projetos aos sistemas de captação de recursos. Virou uma coisa de especialista, o cineasta independente não dá conta de montar o tipo de estrutura especializada para a complexidade dos editais. Porém, existem iniciativas de cinema menos atreladas à burocracia. Muitos têm se libertado do edital e feito filmes por conta própria. A gente viu isso pela seleção deste ano do Festival de Brasília. Por exemplo, Branco sai, preto fica, da CEICine. Um filme muito livre, com linguagens muito livres.
O Iracema já tinha essa ideia de cinema livre. Você se considera um pioneiro?
O Iracema é precursor nisso há 40 anos. Não estou dizendo que isso seja uma novidade. Estou dizendo que o cinema retoma essa novidade, essa forma de fazer e se libertando um pouco das amarras de editais.
Você ainda fotografa?
Nunca deixei de fotografar. Tenho uma relação grande com a fotografia. No ano passado, o Instituto Moreira Salles adquiriu o meu acervo analógico que está sendo todo digitalizado e ordenado. Fizeram duas exposições justamente com a temática do golpe de 1964 e que começa em Brasília no período em que eu morava e estudava aqui. Para o ano que vem, está sendo planejada uma mostra dos meus filmes aqui no Cine Brasília. Pretendemos trazer também uma exposição fotográfica.
Não foi o primeiro reencontro do cineasta paulistano com seu passado vivido em terras brasilienses. Ele foi aluno da primeira turma do Instituto de Artes da UnB, onde teve lições com Jean-Claude Bernardet, Paulo Emílio Salles Gomes, Athos Bulcão e o fotógrafo Luís Humberto. Foi embora da cidade logo depois da primeira demissão coletiva de professores da UnB, em 1965, decisão forçada pela perseguição ideológica do golpe militar.
No período em que viveu aqui, Bodanzky andava por uma Brasília pouco habitada, captando imagens em preto e branco da nova capital. Terminou por presenciar os dias que se seguira à ascensão do governo militar e a interrupção do regime democrático no Brasil. O registro fotográfico do período foi reunido numa exposição, gerida pelo Instituto Moreira Salles e chamada Em 1964 (deverá passar por Brasília no ano que vem , com uma mostra de filmes de Bodanzky no Cine Brasília).
Há alguns anos, o cineasta trabalha na produção de um documentário sobre a experiência de ter vivido em Brasília durante a criação da UnB — feita por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. O filme ainda não tem previsão de finalização, mas sempre que pode Bodanzky, se reencontra com colegas e professores para tentar narrar a interrupção de um projeto educativo que ele mesmo classifica como “método holístico de educação”.
Prostituição na Amazônia
Bodanzky trabalhava como fotógrafo com uma equipe de jornalistas alemães registrando a construção da Belém-Brasília, quando se sentou para observar a movimentação em um posto de gasolina. Na década de 1970, o governo militar espalhava uma ideologia de progresso, de milagre econômico. A ideia de narrar esta história por meio de dois personagens: o caminhoneiro Tião “Brasil Grande” (Paulo César Pereio) e uma prostituta juvenil de descendência indígena, Iracema (Edna de Cássia) apareceu na beira da estrada, enquanto o fotógrafo observava meninas imberbes vendendo sexo nas rodovias.
Para convencer os produtores alemães, Bodanzky, mais o roteirista Orlando Senna, viajaram de São Paulo para a Amazônia a bordo de um Fusca, carregando uma câmera Super 8 para registro de imagens. A força da história que o diretor pretendia narrar foi aprovada na Alemanha.
Uma equipe pequena, ocupando uma Kombi, voltou à floresta para a produção de uma película realizada em 20 dias. O filme Iracema — Uma transa amazônica foi finalizado em 1971 e transmitido por um canal alemão no mesmo dia em que uma forte nevasca cancelou a transmissão de um jogo de futebol. A audiência foi enorme e Iracema foi convidado para passar no Festival de Cannes.
Quando finalmente foi exibido no Brasil, em 1980, a saga amazônica levou os prêmios de melhor filme, atriz (Edna de Cássia), atriz coadjuvante (Conceição Senna) e montagem no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
ENTREVISTA / Jorge Bodanzky
Você fez muitos roadmovies na carreira sendo Iracema o principal deles. Por quê?
A minha vida é um roadmovie. Aliás, a vida de todo mundo, não? Tem de se estar sempre em movimento. Cada um trabalha com a sua realidade, não é?
Iracema foi revisto no festival de Brasília, 34 anos depois de vencer no próprio festival. Qual foi sua impressão ao ver o filme de novo junto do público?
Foi muito bom rever, o Iracema passou em blu-ray muito bem projetado. Gostei muito de como esse longa bate hoje. Eu o projetei para a Associação de Prostitutas do Pará, e o filme foi debatido no fim da sessão. Iracema foi discutido por tantos aspectos, mas nunca havia sido discutido pelo principal, a prostituição. As prostitutas contaram histórias muito parecidas com a história de Iracema. Todas são Iracemas da vida. Meninas violentadas que fugiram de casa e entraram para a prostituição. Contei isso num extra de 10 minutos que será lançado com o DVD pelo Instituto Moreira Salles provavelmente em dezembro. O filme é de uma estranha e triste atualidade. Praticamente tudo que o filme coloca está pior.
Teve essa impressão?
Impressão não. Eu tive certeza. A questão do desmatamento, a ocupação da terra, o trabalho escravo ou a prostituição. Todos os temas do filme estão hoje mais complexos e maiores. É uma triste constatação de que na Amazônia as coisas só pioraram. Só tem uma coisa que mudou. A organização da sociedade civil. Na época do filme, era o período da ditadura, e a sociedade civil não tinha menor condição de se organizar. Hoje está razoavelmente organizada. Até as prostitutas têm uma associação. Isso evoluiu, mas ainda vai levar muito tempo para que eles tenham poder de atuação efetivo.
A história de produção de Iracema é a de um cinema feito com poucos recursos e muita fibra. Alguma nostalgia desse tempo do cinema brasileiro sem grandes orçamentos?
Bom, eu nunca trabalhei em grandes projetos. Sem exceção. É meu jeito de fazer cinema. Não sou contra os editais. Eles são uma maneira extremamente democrática de se obter recursos. Mas a burocracia engessa a produção dos diretores. Muitos terminam por enquadrar seus projetos aos sistemas de captação de recursos. Virou uma coisa de especialista, o cineasta independente não dá conta de montar o tipo de estrutura especializada para a complexidade dos editais. Porém, existem iniciativas de cinema menos atreladas à burocracia. Muitos têm se libertado do edital e feito filmes por conta própria. A gente viu isso pela seleção deste ano do Festival de Brasília. Por exemplo, Branco sai, preto fica, da CEICine. Um filme muito livre, com linguagens muito livres.
O Iracema já tinha essa ideia de cinema livre. Você se considera um pioneiro?
O Iracema é precursor nisso há 40 anos. Não estou dizendo que isso seja uma novidade. Estou dizendo que o cinema retoma essa novidade, essa forma de fazer e se libertando um pouco das amarras de editais.
Você ainda fotografa?
Nunca deixei de fotografar. Tenho uma relação grande com a fotografia. No ano passado, o Instituto Moreira Salles adquiriu o meu acervo analógico que está sendo todo digitalizado e ordenado. Fizeram duas exposições justamente com a temática do golpe de 1964 e que começa em Brasília no período em que eu morava e estudava aqui. Para o ano que vem, está sendo planejada uma mostra dos meus filmes aqui no Cine Brasília. Pretendemos trazer também uma exposição fotográfica.