Vampiro erudito é outra coisa. Em vez de muito pancake, voos mirabolantes e dentes afiados atrás de um pescoço desatento, classe, muita classe. Além, claro, de cultura, bagagem burilada em séculos e séculos de boas leituras e (con)vivências. E é exatamente toda essa, digamos, experiência de vida que deixa Eve (Tilda Swinton, atriz britânica) e Adam (Tom Hiddleston, ator inglês), personagens de Amantes eternos, novo filme de Jim Jarmusch (Flores partidas, Estranhos no paraíso e Daunbailó), entediados e decepcionados com a humanidade (ou zumbis, como preferem).
O casal apaixonado acompanhou a evolução dos tempos e se adequou ao século 21. Voa de primeira classe, bebe sangue em garrafinhas de uísque e até encontra uma maneira de evitar “produtos” contaminados. Outsiders e apaixonados, os dois se dividem entre Tânger (Norte do Marrocos) e Detroit (Michigan, EUA), alimentando suas paixões (literatura e música, respectivamente) durante sua longa existência.
Amantes eternos é impecável em todos os aspectos, da primeira à última cena, da caracterização dos atores (e interpretações) às locações e cenários, passando por diálogos mordazes e ironia fina – piadinhas envolvendo questões ambientais e de comportamento surgem em momentos mais que oportunos.
Amarrando a trama está um dos pontos marcantes do filme: a trilha sonora (que faturou prêmio em Cannes, onde foi exibido no ano passado). Logo na primeira cena, a música dá sinais de que marcará presença na história que se passará a seguir. Numa vitrola (isso mesmo, eles evoluíram mas preservaram belas raridades), ouve-se a impactante e apaixonada Funnel of love, que fala de joelhos fracos e cabeças girando no inevitável funil do amor.
A canção, lançada nos anos 1960 por Wanda Jackson, cantora e guitarrista norte-americana que foi uma das pioneiras do rockabilly, é apenas uma das preciosidades sonoras do filme em que Jarmusch faz sua maior declaração de amor pela guitarra. Em cena, um verdadeiro desfile de modelos colecionados por Adam, o romântico guittar vampire.
Jarmusch, de 61 anos, é guitarrista desde os anos 1970. Tem um trio formado em 2009, o SQÜRL (com Carter Logan e Shane Stoneback) e é o próprio grupo que interpreta Funnel of love ao lado da vocalista da banda Cults, Madelline Follin. A trilha sonora arrasa-quarteirão de Amantes eternos é assinada pelo trio e pelo músico Jozef van Wissem, alemão que Jarmusch conheceu em 2006, em Nova York, e que se destaca pelo trabalho minimalista. Outro bom momento é a “canja” da cantora libanesa Yasmine Handam, radicada em Paris, que, segundo Adam, “é muito boa e, por isso mesmo, nunca fará sucesso”.
Casal original A fina ironia que atravessa a trama está em cena como se quisesse confirmar a todo o tempo que a existência seria trágica, não fosse cômica. Adam desdenha a raça humana, incapaz de distinguir o bom do ruim; critica o fato de cientistas importantes terem sido incompreendidos em suas épocas, e muitos ainda insistirem em duvidar, até hoje, de Darwin. E, afinal, não deve ser uma simples coincidência o fato de o casal central se chamar justamente Adão e Eva. Muito interessante é o fato de o amor dos dois se sustentar exatamente em suas diferenças: ele é soturno e romântico, ela vivaz e determinada. É “Eva” quem constantemente puxa “Adão” e o convence de que a vida, apesar de todos os enganos que os zumbis vêm cometendo durante todos esses séculos, vale a pena.
O contraponto “jovem” do filme de poucos personagens (e atores de todo o planeta) vem com Ava (Mia Wasikowska, atriz australiana), irmã de Eve, e Ian (Anton Yelchin, ator russo), o fornecedor dos objetos raros que Adam coleciona. No outro extremo está o veteraníssimo dramaturgo Christopher Marlowe (John Hurt, ator britânico). Outsider como Eve e Adam e o próprio Jarmusch, Marlowe é autor dos chamados versos brancos, estrutura que acabou sendo empregada por Shakespeare. O poeta e tradutor inglês viveu no período elisabetano, mas, como se pode ver, sob o olhar de Jarmusch ganhou vida longa como mais um vampiro erudito.
Amantes eternos ou Only lovers left alive, em tradução literal “só apaixonados sobreviverão”, é obra de conteúdo extenso, rara profundidade exposta em tom de brincadeira, que provoca e permite variadas leituras, divertidas (apenas) e/ou surpreendentes. Tem ritmo lento como é longa também a vida dos personagens, sem a urgência da sociedade contemporânea. E propõe uma pausa de bom gosto em meio a tantas versões fakes, datadas e sem graça de histórias sobre vampiros.
O casal apaixonado acompanhou a evolução dos tempos e se adequou ao século 21. Voa de primeira classe, bebe sangue em garrafinhas de uísque e até encontra uma maneira de evitar “produtos” contaminados. Outsiders e apaixonados, os dois se dividem entre Tânger (Norte do Marrocos) e Detroit (Michigan, EUA), alimentando suas paixões (literatura e música, respectivamente) durante sua longa existência.
Amantes eternos é impecável em todos os aspectos, da primeira à última cena, da caracterização dos atores (e interpretações) às locações e cenários, passando por diálogos mordazes e ironia fina – piadinhas envolvendo questões ambientais e de comportamento surgem em momentos mais que oportunos.
Amarrando a trama está um dos pontos marcantes do filme: a trilha sonora (que faturou prêmio em Cannes, onde foi exibido no ano passado). Logo na primeira cena, a música dá sinais de que marcará presença na história que se passará a seguir. Numa vitrola (isso mesmo, eles evoluíram mas preservaram belas raridades), ouve-se a impactante e apaixonada Funnel of love, que fala de joelhos fracos e cabeças girando no inevitável funil do amor.
A canção, lançada nos anos 1960 por Wanda Jackson, cantora e guitarrista norte-americana que foi uma das pioneiras do rockabilly, é apenas uma das preciosidades sonoras do filme em que Jarmusch faz sua maior declaração de amor pela guitarra. Em cena, um verdadeiro desfile de modelos colecionados por Adam, o romântico guittar vampire.
Jarmusch, de 61 anos, é guitarrista desde os anos 1970. Tem um trio formado em 2009, o SQÜRL (com Carter Logan e Shane Stoneback) e é o próprio grupo que interpreta Funnel of love ao lado da vocalista da banda Cults, Madelline Follin. A trilha sonora arrasa-quarteirão de Amantes eternos é assinada pelo trio e pelo músico Jozef van Wissem, alemão que Jarmusch conheceu em 2006, em Nova York, e que se destaca pelo trabalho minimalista. Outro bom momento é a “canja” da cantora libanesa Yasmine Handam, radicada em Paris, que, segundo Adam, “é muito boa e, por isso mesmo, nunca fará sucesso”.
Casal original A fina ironia que atravessa a trama está em cena como se quisesse confirmar a todo o tempo que a existência seria trágica, não fosse cômica. Adam desdenha a raça humana, incapaz de distinguir o bom do ruim; critica o fato de cientistas importantes terem sido incompreendidos em suas épocas, e muitos ainda insistirem em duvidar, até hoje, de Darwin. E, afinal, não deve ser uma simples coincidência o fato de o casal central se chamar justamente Adão e Eva. Muito interessante é o fato de o amor dos dois se sustentar exatamente em suas diferenças: ele é soturno e romântico, ela vivaz e determinada. É “Eva” quem constantemente puxa “Adão” e o convence de que a vida, apesar de todos os enganos que os zumbis vêm cometendo durante todos esses séculos, vale a pena.
O contraponto “jovem” do filme de poucos personagens (e atores de todo o planeta) vem com Ava (Mia Wasikowska, atriz australiana), irmã de Eve, e Ian (Anton Yelchin, ator russo), o fornecedor dos objetos raros que Adam coleciona. No outro extremo está o veteraníssimo dramaturgo Christopher Marlowe (John Hurt, ator britânico). Outsider como Eve e Adam e o próprio Jarmusch, Marlowe é autor dos chamados versos brancos, estrutura que acabou sendo empregada por Shakespeare. O poeta e tradutor inglês viveu no período elisabetano, mas, como se pode ver, sob o olhar de Jarmusch ganhou vida longa como mais um vampiro erudito.
Amantes eternos ou Only lovers left alive, em tradução literal “só apaixonados sobreviverão”, é obra de conteúdo extenso, rara profundidade exposta em tom de brincadeira, que provoca e permite variadas leituras, divertidas (apenas) e/ou surpreendentes. Tem ritmo lento como é longa também a vida dos personagens, sem a urgência da sociedade contemporânea. E propõe uma pausa de bom gosto em meio a tantas versões fakes, datadas e sem graça de histórias sobre vampiros.
Assista ao trailer de 'Amantes Eternos', com Tilda Swinton: