Cinema

Em entrevista, Ney Latorraca relembra o passado e os amigos da jornada

Um dos principais nomes da dramaturgia nacional, o ator celebra os 50 de carreira e 70 anos de idade na próxima sexta-feira

Diego Ponce de Leon

Ney Latorraca: "Se eu consigo fazer uma pessoa sorrir ou se emocionar já é uma vitória"
Todos os dias, Ney Latorraca caminha oito quilômetros pelos arredores da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro. Inevitavelmente, ele cruza com os mais diversos tipos. “Um pai de família me joga o filho no colo, de 7 meses, e diz que a criança é minha fã, desde que nasceu. E bate foto! Passa uma senhora e berra: ‘Seu Quequé!’. O lixeiro, de cima do caminhão, pede: ‘Oh, Ney! Faz o Barbosa para gente’. É essa loucura, todo santo dia”, comenta, aos risos, o próprio ator.


Os personagens de Rabo de Saia, TV Pirata, Vamp, O Cravo e a Rosa, Irma Vap e tantos outros, permeiam a memória afetiva do espectador brasileiro e fazem de Ney Latorraca um dos mais queridos e prestigiados nomes da dramaturgia nacional. Afilhado de batismo de Grande Otelo e de profissão de Marília Pêra, Ney é “quase uma unanimidade”, como ele mesmo atesta, em tom irreverente.

Nesta entrevista, o artista santista relembra a longa carreira de 50 anos, os amigos da jornada, as histórias marcantes e aproveita para descrever o panorama da profissão, aos 70 anos de idade — a serem completados na próxima sexta-feira, 25 de julho. “O septuagenário aniversário é o principal motivo de celebração”, diz. Depois do susto, em 2012, quando passou 40 dias entre a vida e a morte em um hospital, ele faz questão de garantir: “Estou ótimo”. Entre os fortes traços da personalidade, o humor jamais o abandona: “Capricha na matéria, hein?”, pediu. Para garantir, ele caprichou no papo.

Um dos primeiros trabalhos na tevê: 'Estúpido cupido' (1976)


Seus pais eram do meio cultural…
Minha mãe era corista e meu pai cantor, crooner do Casino da Urca. Minha mãe chegou a trabalhar com Grande Otelo, que é meu padrinho de batismo. Eu nasci em 1944. No ano seguinte, os cassinos fecham e a vida vira um inferno. O que fazer com aqueles músicos, cantores? Meu pai foi para o rádio. Eu mesmo cheguei a fazer rádio, com 6 anos. Minha mãe foi vender umas coisas, acabou virando dona de casa.

Muitos não imaginam que você passou por dificuldades, na infância. Como lidava com o cotidiano?
Às vezes, não tinha o que comer. Então, eu dormia mais cedo para esquecer a fome. Era uma técnica. Enquanto criança, não tive catapora, essas doenças… Pobre não tem tempo de ter essas coisas. Tive uma forte anemia, por falta de alimentação mesmo. Demorou a engrenar. Minha mãe começou a fazer marmitas para fora, vender algumas coisas. Mas a melhora não veio logo. Tanto que, aos 14 anos, eu já trabalhava para ajudar em casa.

O lado ator despertou cedo?
Desde a escola. Lembro-me do professor Paulo, que dava aulas de desenho. Eu não conseguia nota para passar, então “incorporava” umas entidades em sala de aula. E ficava falando: “Ele precisa de nota! Aprove essa entidade”. Toda uma brincadeira, e ele acabava cedendo. Eu enlouquecia os professores. Era muito levado. Teve um professor de inglês que chamou minha mãe e disse: “Esse menino precisa fazer teatro. Ele tem que ir para o palco”. Na própria escola, que era pública, havia um grupo de atores. Eu entrei para esse grupo. Ali começou. Dali, nunca mais saí.

No início da carreira, foi preciso conciliar os palcos com outras atividades…
Sim. Fazia teatro, mas fui ser vendedor de roupa feminina, trabalhar em casas de joias semipreciosas… Eu morava sozinho, em São Paulo. Tentei morar em uma pensão e não aguentei. Era um apartamento pequeno, com colchão no chão, uns cartazes de teatro nas paredes. Fui em frente.

Um dos primeiros trabalhos foi com o “maldito” Plínio Marcos…
Já era ditadura. O nome da peça até representa bem aquele período: Reportagem de um tempo mau. Nós fomos presos! Mas a pior agressão foi terem tirado o espetáculo de cartaz.

Durante a ditadura, foram vários episódios parecidos?
Sim, vários. A classe artística sempre foi linha de frente dos movimentos. Outro dia, achei uma foto de 1968. Dá para ver a Cacilda Becker, Tônia Carrero, Maria Della Costa, Plínio Marcos, o(diretor teatral) Zé Celso (Martinez), Juca de Oliveira, o (dramaturgo) Jorge Andrade e eu, lá no meio. Teatro também é isso. A resistência sempre nos acompanhou.

Você sempre teve essa preocupação de estar bem acompanhado…
Não tenho nada contra os musicais, as comédias em pé, o teatro comercial. Lutamos para termos essa democracia. Um amplo leque. Mas, desde Santos, meu olhar estava voltado para Ademar Guerra, Celso Nunes, Walmor Chagas. Eu sempre falo que eles me escolheram, mas não foi bem assim. Na verdade, eu já os tinha escolhido. Sempre quis o melhor para mim.

Você vive o teatro há 50 anos. Mudou muito?
Não mudou, não. A gente cantava “90 milhões, pra frente Brasil!”. Agora, são 200 milhões. Talvez, seja essa a diferença. Tem muito mais gente. Há muita peça em cartaz. Se você quer ver Ibsen, Tchekhov, Strindberg, você encontra. Quanto à dificuldade, é tudo igual. Fui ler a autobiografia do (cineasta sueco Ingmar) Bergman. Parecia que era a história de um diretor brasileiro. A loucura, os obstáculos para conseguir verba. Uma luta! Woody Allen… Todos os grandes. O problema é a cultura, sempre em segundo plano. O reflexo de um país é a maneira que a cultura é tratada. Por isso, defendo o teatro no currículo das escolas.