Vê-se, no início, várias logomarcas: apoios do governo federal, do governo do estado, de prefeituras, empresas brasileiras e, curiosamente, alemãs. Nesse ritmo, a logomarca da The Match Factory é uma das que mais chamam a atenção. Além de ser uma das primeiras a aparecer, a The Match Factory é uma empresa alemã com forte inserção no mercado audiovisual internacional e será a responsável pela distribuição de 'Praia do Futuro', que, oficialmente, representa uma percursora coprodução entre o Brasil e a Alemanha.
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A parceria com instituições internacionais não é uma característica restrita a 'Praia do Futuro'. Dos quatro longas brasileiros selecionados pela Berlinale, todos tiveram essa preocupação desde o nascedouro. Em entrevista ao Estado de Minas, Eduardo Valente, assessor internacional da Ancine, salienta que os filmes exibidos em Berlim buscaram fundos, apoios internacionais ou interações com programas vinculados a festivais. Valente coordena o programa Encontros com o cinema brasileiro, que convida curadores de 14 festivais, entre eles a Berlinale, para ver 12 filmes brasileiros previamente selecionados.
'Hoje eu quero voltar sozinho' (2014), de Daniel Ribeiro, é um exemplo da busca de diálogos fora do Brasil. Recebido com muito entusiasmo pela plateia, o primeiro longa-metragem do cineasta foi selecionado pelo projeto de elaboração de roteiro da Berlinale Talents Campus e permitiu ao diretor mais portas de entrada à circulação internacional do seu projeto, inclusive para a Berlinale. De forma leve e bem-humorada, o filme narra a história de Leonardo (Guilherme Lobo), um adolescente cego que vive suas primeiras experiências amorosas com o amigo Gabriel (Tess Moreira). Na conversa com o público, Ribeiro salientou que queria mostrar como o amor poderia não estar restrito à visão e que essa seria uma forma de passar além dos preconceitos que envolvem o homossexualismo.
Na última pergunta feita durante coletiva com o elenco de 'Praia do Futuro', uma jornalista russa comentou que o filme não teria espaço em seu país. Wagner Moura lembrou, então, da atual onda homofóbica vivida pela Rússia. Um dos principais comentários sobre a curadoria da Berlinale é a ausência de filmes russos na programação, fato raro em festivais passados. Atualmente, Alemanha e Rússia passam por tensões diplomáticas encadeadas pelos eventos na Ucrânia e por uma reação ao contexto homofóbico da Rússia. A ausência de filmes russos talvez seja uma resposta política a essas situações.
Corpos e geografias afetivas
O cinema de Karim Aïnouz é marcado por corpos em estados de tensão, em travessias, psicológicas e espaciais. Os deslocamentos de personagens como Madame Satã ou Suely estão permeados por estradas, paisagens desertas, não lugares, motéis, rodoviárias, hotéis e aeroportos. São longos percursos e prenhes de contratempos. Em 'Praia do Futuro', essa tendência não apenas permanece como se intensifica. A primeira sequência do filme mostra Konrad apostando corrida com seu amigo entre dunas que estão próximas à praia. Ao fundo vemos hélices gigantescas que giram para gerar energia eólica. São alemães que rodam o mundo todo para morrer na Praia do Futuro, como comenta Donato durante o acontecimento mais trágico do filme.
Dividido em três partes, o roteiro do filme tece, sutilmente, a dramaturgia de corpos que atravessam mares para manter o transe de uma paixão. A primeira parte chama-se “O abraço de um afogado”; a segunda, “O herói partido ao meio”; e a terceira, “O fantasma que falava alemão”. Junto com os deslocamentos espaciais, Aïnouz salienta contratempos, habilmente mostrados pelas elipses. São cicatrizes, ora mais dramáticas, ora sutis, riscadas entre geografias díspares e corpos que insistem numa união. Se a Praia do Futuro é o local da amplidão que não acolhe, Berlim se transforma nessa lente, num ambiente de resguardo e proteção, que isola e cria uma individualidade opaca.
O filme revela um interessante retorno de Karim Aïnouz aos princípios estéticos do início da sua carreira. Há, no entanto, alguns excessos dramáticos, apostas mais ousadas ou perigosas, como a ênfase em tratar seus personagens como super-heróis. Muitas vezes, quando permeado por discursos, essas intenções dramáticas não funcionam da melhor maneira na tela e são nesses momentos que o filme tangencia um drama contemplativo, com trechos beirando a monotonia. São momentos menores, que não abalam o conjunto do filme, o qual se arrisca sempre a inventar novos espaços e afetos. A cena de uma longa travessia de motos por uma neblina opaca, sem horizonte, talvez seja uma das que melhor sintetizam o filme, o instante em que personagens e espectadores despedem-se. Nessa pulsação, o futuro transforma-se num gesto de risco.
Três perguntas para...
Karim Aïnouz
cineasta
1 - Quando começou o projeto de 'Praia do Futuro' e como ele foi desenvolvido?
O filme começou a ser escrito em 2004 e as filmagens ocorreram em 2012. A ideia inicial era construir uma obra que não estivesse restrita à contemplação do cinema contemporâneo, mas que também dialogasse com personagens masculinos envolvidos em contextos de ação e aventura. Por outro lado, tanto Donato como Konrad também são frágeis e contraditórios, como “heróis partidos ao meio”, que é o título da segunda parte do filme.
Berlim é uma cidade banguela, que falta pedaços, que faltam dentes e é cheia de lacunas, de espaços que faltam. A primeira vez que visitei Berlim foi em 1984 e fiquei impactado. Depois de morar em Nova York, resolvi passa um tempo maior aqui e hoje é um lugar em que me sinto em casa. A história de 'Praia do Futuro' nasceu de Berlim e foi a cidade quem instaurou o roteiro. Não o contrário. Por outro lado, o próprio nome da Praia do Futuro sugere um não lugar, uma vastidião por onde gosto de inserir o conflito dos meus personagens. E o filme surge dessa dúvida entre um desejo de voltar e outro de ficar.
3 - Como foi o processo de coprodução com a Alemanha?
Olha, uma coprodução é um processo educativo. Não foi nada simples. Existem, sempre, muitas diferenças culturais e de formas de produção, no meu caso, entre o Brasil e a Alemanha. Isso mostra que é uma relação que deve ser construída, pouco a pouco. Foi difícil no início e o filme ainda é uma produção com maiores recursos brasileiros, num contexto internacional de Brics, quando buscamos um emponderamento. Mas também foi o primeiro filme entre Brasil e Alemanha nesse formato de coprodução. É um aprendizado mútuo.