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Ele, particularmente, vem gostando cada vez mais da figura do narrador. “Tenho formação literária, leio muito, escrevo livros, escrevi novela. A crítica hoje rejeita qualquer forma de sentimento; um beijo que for sentimental, por exemplo, eles dizem que foi marketing. É preconceito, há casos em que é preciso ser didático”. Bom exemplo de narrativa didática é o capitão Nascimento, personagem de Wagner Moura em 'Tropa de elite' (2007), de José Padilha. Criado exatamente para dar “liga” à trama, ele repete cena após cena o que o espectador acabou de ver, como se perguntasse: “Entendeu?”. “Tropa...' é um filme particular, na medida em que estava lidando com uma situação da política. Não houve filme nos últimos anos que bateu contra o governo como ele. É único, já que os outros dependem do dinheiro público. Nesse caso, vejo o narrador didático até como necessidade”, afirma Rubens.
DESLOCAMENTOS
O cineasta Beto Brant ('O invasor', de 2001) conta que seu próximo filme provavelmente terá a figura de narrador em terceira pessoa. Não antecipa nada sobre a trama, mas diz que o livro do escritor e roteirista Marçal Aquino (leia entrevista) no qual será baseado (ainda inacabado) tem a figura desse narrador. A única vez em que utilizou esse mesmo recurso de linguagem foi no seu primeiro curta, 'Aurora' (1987). Beto Brant defende que é fundamental, antes de escrever qualquer linha do roteiro, que o autor esteja ciente de que vai usar um narrador e qual papel ele terá.
“O narrador em terceira pessoa é independente, testemunhal”, explica, acrescentando que o filme narrado pelo próprio personagem está dentro do ponto de vista de quem está vivendo a trama, enquanto a terceira pessoa se mostra unipresente (“ele pode acompanhar o ator, vai com ele aonde ele for”). “Mas existem filmes com esse foco narrativo na primeira pessoa em que ela se desloca”, analisa, lembrando que em seu filme mais recente, 'Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios', a narrativa é feita pelo fotógrafo, apesar de não ter locução em off. “Não quer dizer que porque ele não existe a história não acompanhe o que ele vivencia, então, ele passa a ser narrador”, conclui, ensinando que num mesmo filme esse foco na narrativa pode se deslocar para outros personagens.
VISUAIS E ORAIS
Professor de roteiro e jornalista, o mineiro Paulo Vilara usa um esquema simples em suas aulas para “candidatos” a roteiristas. Para começar, aborda a existência das narrativas e narradores visuais e orais. “Visualmente, um filme pode ser narrado sob o ponto de vista do diretor (câmera mostra a história como quem está de fora) e/ou sob o ponto de vista de um ou mais personagens”. E avisa: “Quando o ponto de vista é o de um personagem, a câmera é subjetiva.” No caso dos narradores orais há a figura do locutor imaginário (na terceira pessoa). “Nesse caso, ele pode ser onisciente, sabe de tudo, é uma espécie de Deus. Exemplo? “Soberba', de 1942, de Orson Welles. Ele próprio vai narrando e demonstra saber até o que o personagem pensa”. Já o narrador imaginário observador é o que sabe apenas o que vê e ouve. “Em 'Cidadão Kane' (1941), o próprio Welles faz o papel. Recurso muito usado, o narrador como personagem na primeira está presente, lembra Vilara, em 'O homem que não estava lá' (2001), dos irmãos Joel e Ethan Coen, e também em 'Memórias póstumas de Brás Cuba'(1985), de Júlio Bressane, baseado em livro de Machado de Assis. “Nesse caso, o narrador conta a história mesmo depois de morto”, diz, lembrando que existem ainda narradores como personagens secundários, “que falam pouco ou quase nada durante a trama.”
SALVA-VIDAS
Recurso de linguagem, o narrador pode surgir para elucidar textos aparentemente confusos. Foi assim com Blade runner, o caçador de androides (1982), de Ridley Scott, que ganhou narração em off do ator Harrison Ford depois de pronto. A versão original foi considerada obscura pelos produtores e não funcionou nas sessões prévias nos EUA. O clima ficou tenso e Scott aceitou o narrador para “salvar” o filme, que mais tarde se tornaria cult.
O NARRADOR EM...
>> 'Álbum de família' – No drama do diretor John Wells, a narradora, contadora de história aparentemente imparcial, é a personagem de Julia Roberts, Bárbara. A possibilidade da fala deslocada da situação que ela vive dá a ela, às vezes, distanciamento para enxergar o que ocorreu com a família Weston, subjugada pela mãe Violet (Meryl Streep).
>> 'Blue Jasmine' – Woody Allen ama narradores, muitas vezes é ele próprio quem faz o papel. Em Blue Jasmine, o papel é da personagem-título (Cate Blanchett), mulher forte, orgulhosa, egocêntrica, egoísta, sensível, mas também louca. Ela se vale também da memória, em flashbacks. Recorda o passado para mostrar o que a fez chegar onde está.
>> 'Gravidade' – A aventura estelar de Alfonso Cuaron é contada pela doutora Ryan Stone, personagem de Sandra Bullock, de maneira contida, de modo a não deixar perceber se foram encontradas anotações, gravações ou se ela sobreviveu para contar o que enfrentou.
>> 'O lobo de Wall Street' – Filme de Martin Scorsese contado na primeira pessoa por Jordan Belfort (Leonardo Di Caprio), golpista e corretor da bolsa de valores que publicou livro sobre sua vida. No longa, muitas vezes o personagem se “confunde” e distorce o ocorrido. Numa segunda chance, o espectador conhece a história real.
>> 'Trapaça' – O longa de David O. Russell tem narração off quase como personagem a mais. O casal central, Irving Rosenfeld (Christian Bale) e lady Edith Greensly (Amy Adams) comenta situações e até faz troça. Os dois mantêm praticamente um diálogo em off.
Três perguntas para...Marçal Aquino, escritor e roteirista
No caso de Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, o fotógrafo é o narrador... Quando você acha a presença dessa figura imprescindível numa trama?
No caso do filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, não sentimos necessidade do uso do off. De toda forma, cabe ao personagem Cauby narrar a história, ou seja, a trama e os demais personagens são "apresentados" por ele. No livro era assim e resolvemos manter.
O narrador ajuda o roteirista a contar a história, facilita as coisas? Até que ponto ele tem poder sobre a trama?
A função dele, sem dúvida, é ajudar a contar a história. Isso pode ser feito criativamente e até de forma poética, dependendo do que se propõe. É só tomar cuidado para não ser óbvio ou over. Há um exemplo maravilhoso de diálogos em off no filme novo do Scorsese, O lobo de Wall Street. Ficou divertidíssimo. Muitas vezes, o narrador, presente de forma marcante, não é confiável. Quando Leonardo Di Caprio comenta "para o público" que, apesar de muito drogado, conseguiu voltar pra casa com seu carrão sem cometer nenhum desastre, acompanhamos isso nas cenas. Só que era uma impressão subjetiva do personagem, que, ao ser despertado pela polícia no dia seguinte, descobre seu carro totalmente destruído na frente de casa. Existem recursos, muitos, depende apenas de usá-los bem.
Você prefere filmes com ou sem narrador? O fato de tantos filmes estarem usando narradores atualmente representa tendência?
Não tenho preferência. Acho que a escolha sempre é feita levando-se em conta o que se pretende contar e como. Não creio que seja uma tendência atual, ainda que o filme que mais me agradou ultimamente, A grande beleza, do Paolo Sorrentino (candidato ao Oscar de filme em língua estrangeira), use o narrador de forma direta e com offs.