Davi Pretto e Castanha assinam o roteiro da película e combinam escolhas narrativas com instantes de performance. Como num documentário de observação, o filme percorre a casa de Castanha, que mora com Celina, sua mãe, e conta, ficcionalmente, a história de um sobrinho viciado em crack que rouba e ameaça sua família e a vizinhança. De forma sutil, Castanha percorre uma violência latente, incrustada no cotidiano de Porto Alegre, o ambiente da prostituição masculina, a convivência com a morte, a Aids e os pequenos acontecimentos do submundo teatral por onde o ator circula. É uma obra que salienta os pequenos afetos, sem deixar de esconder gestos de exclusão, mesquinharia ou mesmo injustiça.
A emoção voltou a atingir Davi Pretto e Castanha logo depois da projeção. A conversa com o público também abordou o assunto do kit da “cura gay” e da proposta do deputado Marcos Feliciano, ano passado. Nos créditos finais do filme e numa de suas últimas performances, Castanha simula cantar, ironicamente, a música religiosa 'Segura na mão de Deus'. Em cena, ele está travestido, de batom, e com a Bíblia na mão. Foi preciso pontuar um pouco do contexto homofóbico brasileiro para a plateia estrangeira e berlinense compreenderem a provocação de Castanha.
ALÉM-MAR
Exibido no Forum Expanded, o curta 'Fernando que ganhou um pássaro do mar' (2013) marca a segunda parceria entre o mineiro Helvécio Marins Jr. e o carioca Felipe Bragança, que também cooperaram no longo 'Girimunho', de 2011, dirigido por Marins e com roteiro de Bragança. A primeira cena sintetiza o filme. Engaiolado, um papagaio está na ponta de um barco, numa travessia marinha, do Rio de Janeiro para o Porto, em Portugal.
No curta, Fernando envia cartas, ora de reclames, ora de agradecimento, para um amigo que viajou ao Brasil. Separados por disparidades culturais e geográficas, a língua portuguesa e as cartas criam uma ponte e estabelecem os diálogos, possíveis, entre os atuais contextos políticos de Portugal e do Brasil. De um lado, crise, desemprego e entrevistas com ministros sobre medidas econômicas passam na televisão portuguesa. Do outro lado do Atlântico, um índio reclama, falando ao celular e sentado na privada, da violência policial no contexto das manifestações de junho e pergunta se a realização das Olimpíadas vale tanto sacrifício. Exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o curta envolveu uma equipe de estudantes de cinema de Portugal e do Brasil e a sessão no Forum Expanded foi sua estreia internacional.
Durante a 64ª Berlinale, o cineasta Felipe Bragança enfatizou a continuidade da sua parceria com Helvécio Marins Jr.. Atualmente, Bragança escreve o roteiro de 'A mulher do homem que engolia raio-laser', projeto que foi selecionado pelo Hubert Bals Fund. Do outro lado da parceria, Helvécio é o produtor de 'A mulher amarela', que será o próximo longa de Felipe Bragança.
ROTEIROS BERLINENSES
A primeira exibição do filme 'O homem das multidões' (2013) ocorreu no Kino International, na Karl-Marx Strasse, antiga parte oriental e socialista de Berlim, e, hoje, um dos maiores cinemas da cidade. Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, os diretores Cao Guimarães e Marcelo Gomes ressaltaram o ânimo que sentiam ao apresentar o filme em Berlim, já que o roteiro de 'O homem das multidões' foi inicialmente escrito nessa cidade, quando Marcelo Gomes morou ali, por seis meses, com uma bolsa artística do DAAD. A passagem por Berlim influenciou os diretores a caracterizar Juvenal (Paulo André), protagonista do filme, como um condutor de trem, calado, reservado e cioso da sua própria individualidade, das suas atitudes de reserva. A solidão, portanto, transformou-se no tema central da obra, que foi inspirada no conto homônimo de Edgar Allan Poe. No filme, Juvenal representa uma solidão típica das metrópoles dos séculos 19 e 20, como uma flanêur de Belo Horizonte, cidade onde mora, e lá ele perambula pelas ruas vazias, pelos trens, pelas praças. Quando à vontade, no seu apartamento, costuma falar alto num diálogo consigo mesmo.
O filme também descreve a vida de Margô (Silvia Lourenço), que está prestes a se casar com um namorado de poucos meses que conheceu num site de relacionamentos na internet. Na entrevista, Marcelo Gomes disse que a solidão de Margô é digital, vazia de pessoas reais, mas cheia de interações virtuais. O resultado do filme sintetiza o melhor da parceria do artista mineiro com o cineasta pernambucano. De um lado a plasticidade de Cao Guimarães e, como num contraponto da parceria, surge a ênfase dramática e de construção de personagens que caracteriza os filmes de Gomes. Com uma tela quadrada, e reduzida, a fotografia de Ivo Lopes Araújo poetiza o confinamento dos personagens, enquanto o som de O Grivo cria a cadenciada ambientação sonora e espacial do filme. Cao Guimarães chama a atenção para a forma como a imagem e a dramaturgia situam-se fora do quadro e convidam o espectador a interagir com todas as potencialidades sensíveis que emanam do plano.
SEM SALVAÇÃO
A conversa, inevitavelmente, esbarrou na recente perda de Eduardo Coutinho, assassinado pelo filho no dia 2. Ao contar das entrevistas com solitários cidadãos de Belo Horizonte, que fizeram parte do processo de casting do filme, Cao Guimarães lembrou que eles cogitaram tanto entrevistar Coutinho quanto convidá-lo como ator para o papel do pai de Margô, que acabou ficando com Jean-Claude Bernardet. Abalado pela morte do documentarista brasileiro, Marcelo Gomes compartilhou uma frase da sua última conversa com ele. “O cinema não salva ninguém”, disse Coutinho justamente ao ver 'O homem das multidões' na sua estreia no Brasil. Não, não salva. Mesmo assim, Marcelo Gomes e Cao Guimarães persistirão. O próximo projeto dos dois diretores também passa por Berlim. Eles gravaram imagens em super 8mm do Tempelhof, aeroporto desativado de Berlim e hoje um dos parques mais exóticos da cidade. O próximo filme da parceria tecerá o contraponto entre o fim do aeroporto, o desenlace de um relacionamento amoroso e o ocaso do super 8mm. É aguardar.