Já bem no início do filme, durante aula de literatura, Adéle lê trecho de um romance do século 18, de Marivaux, que, entre outras coisas, diz: “Eu sou uma mulher contando a minha história sem os privilégios que isso me dá”. O que não deixa de ser uma espécie de “epígrafe” do que vai se ver ao longo das três horas seguintes. A duração do filme pode soar excessiva, mas flui bem, além de ser essencial para o que ele traz de especialmente expressivo: vê-se a transformação de Adèle na face dela. Tudo, do contexto da história à relação com outros personagens, é percebido por meio de dezenas de closes de Adèle. Estrutura visual narrativa que constrói um face a face com a personagem, revelando turbilhão de sentimentos, de calculada dissimulação a carência sexual, passando pela tendência à manipulação.
As dubiedades de Adéle têm fundamento filosófico: o existencialismo de Jean- Paul Sartre (1905-1980), citado pela personagem, e argumento de que a existência precede a essência. O que, nas palavras do filósofo, significa: “Que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer”. Quem não é afeito a discussões filosóficas, pode se divertir com tema mais prosaico, saboroso (e misterioso), que, involuntariamente, cruza o filme: o que nos faz sentir atração por alguém e até gostar dele? Por que, às vezes, dizemos sim e, em outros momentos, não? E o que está em jogo nessas questões é mais do que romantismo.
São os méritos de 'Azul é a cor mais quente' que fazem surgir entrelinhas, dissimuladas, discutíveis. A primeira delas é o estímulo a um certo vouyerismo perverso do espectador. Que aparece não em ousadas cenas de sexo, praticamente explícitas, mas em momentos em que tal tom não é parte da estrutura dramatúrgica. E o filme fica artificial, deixa a sensação de ceder ao sensacionalismo fácil como artifício para torná-lo mais “comercial”. O mesmo se pode dizer de certo olhar que, apesar de elegante e simpático, julga (fingindo não julgar) a personagem e o mundo em que ela circula (observado com tradicionalismo digno de nota, como “convencional” ou “transgressor”). O que simplifica o que é complexo, reduz a expressividade do filme, mas que, também, é preciso reconhecer, coloca tais questões em debate.
SAIBA MAIS
O DIRETOR
'Azul é a cor mais quente' é adaptação de história em quadrinhos, com o mesmo título, de Júlie Maroh. O filme ganhou a Palma de Ouro deste ano em Cannes. Abdellatif Kechiche é ator, roteirista e premiado diretor franco-tunisiano, de 52 anos. Radicado na França desde os 6 anos, é admirador de Pier Paolo Pasolini, de Yasujirô Ozu e de Claude Sautet. Em entrevista, falando do último diretor, ele disse que segue a tradição de abordar questões sociais, falar do indivíduo, do grupo e das dificuldades da vida. O segredo do grão (2007) foi lançado no Festival de Veneza, sendo agraciado com o prêmio especial do júri e também com o César de melhor filme e melhor diretor.
Assista ao trailer do filme: