Chega às telas filme que promete dar muito o que falar: 'Tatuagem', primeiro longa de ficção de Hilton Lacerda. Por meio do romance entre um soldado e um agitador cultural, o longa coloca na tela a história de um coletivo de artes cênicas movido a sexo, drogas e teatro. A época são os anos 1970 e o cenário, um cabaré de periferia frequentado pela boemia do Recife. O filme ganhou no 41º Festival de Gramado os prêmios de Melhor Filme (do Júri Oficial e da Crítica), de Melhor Trilha (para o DJ Dolores) e de Melhor Ator (para Irandhir Santos). No Festival do Rio, levou Prêmio Especial do Júri Oficial, de Melhor Ator (Jesuíta Barbosa), de Melhor Ator Coadjuvante (Rodrigo Garcia), Melhor Longa de Ficção (Júri Popular) e Melhor Longa Latino-americano (crítica internacional).
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Já na primeira cena Clecio (Irandhir Santos) avisa que a arma do grupo Chão de Estrelas é o deboche. E define o cabaré que apresentam como Moulin Rouge do subúrbio ou o Stúdio 54 da favela (em alusão ao famoso clube da segunda metade dos anos 1970, em Nova York). O que sugere que o escracho dará o tom do filme. No palco, o grupo de teatro de fato apronta todas. Mas o filme se desloca para os bastidores da trupe, detendo-se, com surpreendente delicadeza sobre os sentimentos e a vida dos integrantes. O filme tem aspecto notável: a deslumbrante atuação de Irandhir Santos, em obra na qual todo o elenco marca presença expressiva, individualizando extensa galeria de tipos.
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Brilha ainda em 'Tatuagem' a fotografia, que, em parceria com a iluminação e a direção de arte, cria visualidade personalizada. Também é muito bom o roteiro pelo modo como coloca (e desenvolve) a trama e o contexto movido por múltiplos sentimentos, desejos e culturas. Merece registro a generosidade do diretor no modo como vê os (sempre tão mal falados) coletivos alternativos e as políticas do êxtase nos anos 1970. Menos acertado é o culto aos excessos: de repetição de imagens que não acrescentam nada ao já dito; de frases de efeitos (algumas ótimas, mas boas quando inseridas em bons diálogos); e, talvez, de personagens (o grande número deles é muito saboroso, mas são tantos que vários ganham tratamento superficial, tornam-se quase clichês). Limites de filmes de estreia.
A onipresença dos dois aspectos até cria desequilíbrio, mas também acaba funcionando a favor de filme que, com muitas provocações, procura, deliberadamente, a divergência estética, a diferença de opiniões, o posicionamento do espectador diante do mostrado. E, nesse sentido, 'Tatuagem' não é memorialismo (ainda que mostre outras memórias dos anos 1970 que não a luta armada). Trata-se, de fato, de uma ficção ambientada no período, deslocamento temporal para fustigar tempos (atuais) de proibicionismo e convencionalismo generalizado. Até pode gerar incômodo uma certa nostalgia que se infiltra nessa abordagem, mas é difícil ficar insensível à celebração da multiplicidade dos afetos, dos delírios da arte ou das utopias libertárias.
Hilton Lacerda é roteirista de 'Amarelo manga' e 'Febre do rato' (de Cláudio Assis), 'Filmefobia' (de Kiko Goifman), 'A festa da menina morta' (de Matheus Nachtergaele) e 'Árido movie' (de Lírio Ferreira, com quem codirigiu 'Cartola – Música para os olhos').
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