“Os músicos que tocam baixinho uma suave música fininha que sobe prás estrelinhas do céu pintado de azul”…. vão parar no cinema. “Os meninos perfilados germânicos que entram na igreja, saem depressa e tornam a entrar” também vão. Assim como “a calma das casas subindo a ladeira e os cândidos bichos de papelão rodeando o menino Jesus que abençoa aquilo tudo!”. Esses versos de Carlos Drummond de Andrade, escritos em 1927, sob o pseudônimo de Antônio Chrispim, exaltam um tesouro mineiro: o centenário Presépio do Pipiripau. Um sonho de menino criado com carinho e dedicação pelo artesão Raimundo Machado (1894-1988), que agora vai virar filme.
É o primeiro longa-metragem da carreira de Salles, acostumado a curtas e comerciais. E foi justamente um desses trabalhos que o fizeram despertar para a criação de Raimundo Machado, que, desde 1976, está no Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG (MHNJB), no Horto, Região Leste da cidade. Há 30 anos, ele dirigiu um comercial sobre o Pipiripau que foi bastante premiado e ajudou a projetar o bem cultural, na época em relativo ostracismo. “Fiquei com aquilo na cabeça, mas só em 2003 comecei a desenvolver o projeto. Em seguida, o roteiro foi contemplado no edital do Fundo Municipal de Cultura. Passei a fazer uma ampla pesquisa, que abrangeu toda a iconografia e documentos existentes no MHNJB, além do Museu Abílio Barreto e da colaboração de um historiador em Juiz de Fora. Assim como o presépio, esta produção também tem um quê de artesanal. Estou fazendo sem pressa, para que saia exatamente como quero e como ele merece ser retratado”, destaca.
'Pipiripau – O mundo de Raimundo' deve ter aproximadamente 75 minutos e começa com um passeio feito por uma grua eletrônica pelas 45 cenas do presépio. É como se o espectador entrasse dentro da obra e conferisse cada detalhe dos personagens produzidos por Raimundo Machado, como os carpinteiros, os ferreiros, os pescadores, os reis magos e a sagrada família, entre outros. Aluizio Salles Jr. alterna depoimentos do próprio artesão – colhidos em 1984, em entrevista realizada pela professora Vera Alice Cardoso, titular do Departamento de Ciência Política da UFMG – com falas da historiadora Thaïs Pimentel, de netos e filhos de Raimundo. “Dois terços do documentário têm a voz do artesão e vamos ilustrando com imagens históricas, que ainda vão ganhar animação do diretor de arte Leonardo Cata Preta. Quero brincar com esses documentos. O filme ainda tem um pouco de ficção, já que um ator-mirim, o Samuel Nascimento, interpreta o protagonista quando criança”, informa o cineasta.
Salles destaca que a gravação feita pela professora Vera Alice, com cinco horas de duração, é possivelmente um dos únicos registros de alguém que testemunhou pessoalmente os primórdios da cidade, pois Raimundo chegou a BH ainda criança, nos últimos anos do século 19. “Era um homem com memória prodigiosa e excelente contador de casos. Nosso personagem narra com detalhes saborosos não só a criação do presépio, mas também histórias muito interessantes do nascimento e do crescimento da própria capital. Ele participou, por exemplo, da construção do pirulito da Praça Sete”, ressalta.
Gênio Uma das cenas mais impressionantes do filme é a que revela os bastidores do Pipiripau, mostrando toda a parafernália de fios e objetos, como tomadas, latas e outras quinquilharias, que o fazem funcionar. “Raimundo era um gênio, um autodidata. Essa é a história de um verdadeiro Leonardo da Vinci negro, artista, artesão e inventor, que construiu com materiais de sucata e peças de ferro-velho uma obra artística e mecânica de viés popular, afinada com as mais modernas tecnologias disponíveis no começo do século 20”, analisa o diretor.
Com trilha sonora do compositor Mauro Rodrigues – que contou com a participação especial da Orquestra de Câmara do Sesiminas – e tendo como corroteirista o jornalista Paulo Vilara, 'Pipiripau – O mundo de Raimundo' deve ser lançado no fim do ano. Para Aluizio Salles Jr., é um momento mais do que apropriado para apresentar a história do presépio contada pelo seu próprio autor. “Até porque, com o Natal, o presépio sempre recebeu mais visitantes. Mas, infelizmente, pelo que tudo indica, ele ainda estará fechado. O que é uma pena. Mas espero que o filme possa resgatar a importância dessa obra de arte para a cidade e fazer um movimento cultural em torno dele”, propõe Aluizio.
O Criador e seu presépio
Não há como dissociar Raimundo Machado e o Presépio do Pipiripau. Criador e criatura andam juntos. Raimundo é filho de um casal que veio a pé de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, para Belo Horizonte em busca de oportunidades. Raimundo nasceu em um ranchinho de sapé à beira da linha da estrada de ferro onde seu pai havia se empregado, em Matozinhos. A família mudou-se para a capital e logo se instalou na Colônia Américo Werneck, região que, hoje, compreende os bairros Horto, Sagrada Família, Floresta e Santa Tereza, e que era conhecida, no início do século, pelo nome de Pipiripau.
Apaixonado por presépios desde menino, Raimundo começou, em 1906, com apenas 12 anos, a montar o seu próprio, iniciado com um Menino Jesus que comprou por 400 réis. O artesão o colocou em uma caixinha de sapatos forrada de musgos e cabelos de milho. Nascia ali o que viria a se tornar o Presépio do Pipiripau, que, em 1976, foi transferido para a UFMG e protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
São 586 figuras móveis e 45 cenas distintas, entre religiosas (vida de Cristo) e profanas, dispostas sem a preocupação de sequência cronológica. Há cinco planos, nos quais as pinturas das paredes laterais e do fundo dão continuidade e unidade às cenas. As figuras estão dispostas em um cenário de quatro metros de largura, 3,2 metros de altura e quatro metros de profundidade.
Enquanto isso...
...em reformas
Quando o filme 'Pipiripau – O mundo de Raimundo' for lançado, no fim do ano, o presépio ainda estará fechado. Ele vai passar por um processo de restauração artística e arquitetônica que, inicialmente, tem previsão de término de dois anos. Segundo o coordenador da restauração e ex-diretor do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, Fabrício Fernandino, não é um projeto fácil e envolve o Iphan nacional, o de Minas e o Ministério da Cultura. “Toda modificação teve que passar por esses órgãos. Essa etapa jurídica é lenta, mas essencial. Além do mais, não é uma obra fácil, porque o presépio é delicado, exige cuidados minuciosos”, explica Fabrício. Será construída uma caixa metálica para proteger o presépio e, para abrigá-lo, um novo edifício com normas de segurança e acessibilidade. “Será uma espécie de redoma, que vai proteger o presépio enquanto construímos a nova sede”, completa Fernandino.
Assista ao trailer do filme: