Cinema

Apesar das inovações tecnológicas, Oscar aposta na atuação de personagens

Concorrentes ao prêmio principal e coadjuvante têm grandes momentos em cena

Gracie Santos

Vencendo ou não, Emanuelle Riva será a dama da noite
Parece até uma resposta da arte da interpretação ao abuso do uso de tecnologia. Poucas vezes, nesta história de 85 anos da premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, houve tantos atores em interpretações tão surpreendentes. Em certos casos, é difícil distinguir coadjuvantes de protagonistas, afinal a importância do papel não se mede pelo tempo em cena, mas pela importância do personagem e sua atuação. Em 'Os miseráveis', por exemplo, além de irretocável, a Fantine de Anne Hathaway é personagem fundamental para a trama, enquanto Helena Boham Carter (deixada de lado) faz brilhantemente o papel coadjuvante de madame Thénardier. O filme bem poderia ter dois candidatos ator principal: Hugh Jackman e Russel Crowe (outro esquecido) disputam a cena com igual envergadura.


O mesmo vale para 'Django livre'. Jamie Foxx está bem como personagem-título, mas o dentista dr. King Schultz de Christoph Waltz tem interpretação primorosa. Seu personagem não é mero coadjuvante. Idêntica analogia pode ser feita em 'O mestre'. O personagem-título, brilhantemente construído por Philip Seymour Hoffman, concorre a coadjuvante, enquanto Joaquin Phoenix é candidato (de peso) a ator principal. Fórmula complicada essa de rotular atuações, afinal são muitos os critérios em jogo. Satisfeitos ou não com os escolhidos, é inegável considerar que este é um Oscar de atuações brilhantes e de interpretações destacadas. Até mesmo num filme “menor” (O lado bom da vida não é exatamente obra-prima), personagens principais e coadjuvantes têm grandes momentos em cena. Nesse caso – como em outros –, trabalho visivelmente esculpido pela direção firme de David O. Russell.

A GALOPE

As bolsas de apostas de ator principal atribuem larga vantagem a Daniel Day-Lewis ('Lincoln') trabalho difícil, às vezes encoberto por excesso de maquiagem e de rugas, mas ele se apoiou no que o bom profissional sabe: intensificou o brilho nos olhos e dosou fala e movimentação em cena. Se a vitória de Lewis é tida como barbada, bem próximo dele, com um nariz de diferença, surge a galope o atormentado ex-soldado de Joaquin Phoenix, na melhor atuação de sua carreira, em 'O mestre'. Nem mesmo os que execram musicais podem deixar de ressaltar o talento com que Hugh Jackman encena o Jean Valjean de Os miseráveis. Diálogos densos cantados com perfeição em trabalho visivelmente desgastante ao qual o ator se entregou vigorosamente. A Bradley Cooper, que está muito bem em 'O lado bom da vida', cabe celebrar a indicação, em si um prêmio. Com chances de roubar a estatueta dos favoritos, surge aquele que pode ser o grande azarão da noite: Denzel Washington se saiu bem como piloto herói que tem sérios problemas para resolver em 'O voo'. Quem sabe ele não voa mais alto do que se espera?

Anne Hathaway merecia ser indicada a melhor atriz
Entre as garotas de 9 a 86 anos (idades recordes do Oscar), a vitória de Jessica Chastain ('A hora mais escura') figura como certa. Sua agente da CIA equilibra bem os momentos em que deve conter quase totalmente suas emoções com aqueles em que tem que ser absolutamente fria, trabalho muitas vezes desvalorizado esse da personagem contida, regular, sem grandes arroubos. Mas a torcida é grande para que a senhora Emmanuelle Riva ganhe o homenzinho dourado, belo presente de aniversário. A octogenária francesa que conquistou o mundo com sua interpretação de Anne em 'Amor', a mais velha candidata ao prêmio de Hollywood, completa 86 anos neste domingo. Em baixa nas bolsas surgem Naomi Watts, que fez belo trabalho em 'O impossível', e Jennifer Lawrence, que começa bem e depois se torna mediana em 'O lado bom da vida'. Grande (e merecida) surpresa da noite seria a vitória da pequena Quvenzhané Wallis, Naysie para quem não quiser enrolar a língua, por sua incrível atuação em 'Indomável sonhadora'. A atriz de 9 anos da trama foi descoberta pelo diretor Benh Zeitlin, em Louisiana, em testes realizados com mais de 4 mil crianças. Quem venceu 4 mil bem poderia vencer quatro hoje.

Joaquin Phoenix está em seu melhor papel no filme 'O mestre'
Já em se tratando dos diretores a batalha só será ganha no último minuto. Se David O. Russell mostra serviço no seu filme simplezinho (muitos criticam a adaptação de 'O lado bom da vida' para o cinema), Ang Lee deixa sua (bela) assinatura em 'As aventuras de Pi'. Não deve ser fácil dirigir um ator praticamente solo em cena durante todo o tempo, ainda mais contracenando com um tigre virtual. Já Spielberg deixa de lado o cinema espetáculo e coloca todo mundo para falar (sem freio) em 'Lincoln'. Tarefa árdua a de equilibrar falas e egos naquele set. Mas o grande mérito é, sem dúvida, o do sempre cruel Michael Haneke (Amor), que entremeia belos closes a detalhes de um apartamento onde dois octogenários vivem os derradeiros momentos de seu amor. O azarão da noite é sem dúvida o jovem americano Behn Zeitlin, de 30 anos, que estreia em longa direto no Oscar com 'Indomável sonhadora'. Além da mão “firme”, ele mostrou que tem olho clínico quando escolheu sua atriz mirim, Quvenzhané Wallis.

SALVE A AMÉRICA

Enquanto as bolsas apostam cegamente em 'Argo' como o melhor filme do ano, 'Lincoln' não deixa de ter chances concretas de arrebatar a estatueta. Um filme que concorre em 12 categorias não pode ter seus méritos desconsiderados. E, afinal, Affleck não está com essa bola toda em Hollywood (não foi indicado a diretor nem ator pelo filme). Mas tanto 'Argo' quanto 'Lincoln' são filmes, digamos, de alma americana. Obras sobre grandes feitos da América salvadora, que conservam o país no posto de “a pátria do mundo”. O mesmo vale para 'A hora mais escura', de Kathryn Bigelow, que relata momento único de vingança dos americanos depois de seu 11 de setembro negro. O problema do filme é que a CIA parece não ter gostado da riqueza de detalhes com que a moça expôs a caça a Osama bin Laden. Afinal, o que é ficção e o que realidade no incrível relato de Bigelow?

Voltando à vingança, o mais “sanguinário” dos diretores, Quentin Tarantino, diz que fez seu filme sobre vingança, pois, na opinião dele, todo mundo ama se vingar. No caso de 'Django livre', os negros se vingam, com a ajuda de Jamie Foxx, de toda uma vida de discriminação social no EUA (batalha ainda não vencida, apesar do presidente negro Obama). Mas a vitória de 'Django livre' estaria certamente na lista dos azarões da noite, que tem ainda 'O lado bom da vida', 'Os miseráveis' (musicais não costumam vencer Oscars nos tempos atuais) e 'Indomável sonhadora' (no caso do representante do cinema independente, só a indicação já é considerada prêmio). Tudo bem que número de indicações não é necessariamente parâmetro para saber quem ganha a estatueta de melhor filme, mas 'As aventuras de Pi', indicado em 11 categorias, tem assinatura que nunca deve ser posta de lado, a de Ang Lee, artífice da cena e do pensamento zen. O cara merece respeito e não deve ser esquecido. Num ano de obras de estéticas e temas múltiplos, a grande surpresa é sem dúvida o austríaco Michael Haneke. 'Amor', que entra no páreo com chance dupla, pode (e deveria) ser escolhido o melhor filme do ano ou, no mínimo, o melhor filme em língua estrangeira.