A estreia do longa-metragem A mulher de longe, neste sábado, durante a mostra de cinema de Ouro Preto, Cineop, marca o início das homenagens que o cineasta Luiz Carlos Lacerda prepara para o escritor e roteirista mineiro Lúcio Cardoso, no ano do centenário de seu nascimento. A parceria artística que se iniciou na década de 1960, além de render o curta-metragem O enfeitiçado (1968) e o longa Mãos vazias (1971), ainda terá como fruto uma ficção – Introdução à música do sangue – além do documentário.
“A mulher de longe virou um poético documentário sobre cinema, que fala do processo de um escritor às voltas com o desejo de realizar um filme”, detalha Luiz Carlos Lacerda, mais conhecido no meio cinematográfico como Bigode. Aliada à vontade de prestar reverência ao escritor, o cineasta propôs-se a resgatar os passos dados por Lúcio Cardoso no cinema. Curiosamente, em 1948, o pai de Lacerda, João Tinoco de Freitas, foi o produtor de Almas adversas, longa totalmente rodado em Congonhas do Campo com argumento de Lúcio Cardoso.
“Em 1949, meu pai convidou Lúcio para dirigir um filme. Ele escreveria o roteiro e seria o diretor”, conta Lacerda. O escritor aceitou o desafio de embrenhar-se pelo cinema. Escolheu atores como Iracema Vitória, Fernando Torres e Rosita Gay e o diretor de fotografia Rui Santos, mas a obra não foi concluída. “Acabou o dinheiro e era muita desorganização. As pessoas não sabiam direito que filme era aquele.”
Desde 1968, ele nutre a ideia de recuperar as poucas cenas registradas por Cardoso. Na época, chegou a ir à Cinemateca Brasileira, mas não conseguiu encontrar qualquer vestígio do trabalho. “Abriram um galpão enorme para mim e me falaram para procurar. Como havia sido filmado com nitrato de prata, e o negativo era altamente inflamável, fiquei com medo de o material ter sido queimado”, conta. Por sorte, não foi o que ocorreu.
Motivado pelo desejo da homenagem, Luiz Carlos Lacerda retomou sua busca e recebeu a notícia por meio de Arthur Sens, da Cinemateca. “Ele me disse que o filme estava lá, era mesmo de nitrato de prata e que eles o estavam recuperando. Levou seis meses de trabalho, porque estava cheio de fungos. É uma coisa maravilhosa”, elogia Bigode. O material recuperado reúne somente cenas editadas, ou seja, não há takes repetidos. “É uma fotografia lindíssima. Tem uma atmosfera de Eisenstein, uma coisa meio Pasolini”, descreve.
Sem roteiro Mesmo de posse do filme, Luiz Carlos Lacerda não tinha o roteiro e, portanto, não sabia o que se passava nos diálogos. Nem mesmo a “mulher de longe”, que dá nome ao filme, está claramente identificada. Foi então que teve a ideia de enriquecer o projeto com trechos dos diários das filmagens feitos por Lúcio Cardoso, material localizado na Fundação Casa de Rui Barbosa.
“São textos lindíssimos. É a literatura do Lúcio, a cara dele. Ao mesmo tempo, revela o conflito do romancista. Chega a dizer que a literatura depende só de um caderno e um lápis. Já no cinema, é preciso que a nuvem saia, que chova, que o ator esteja bem e a lente estar limpa”, explica.
O documentário A mulher de longe é a mistura das imagens recuperadas com o diário, narrado por Ângelo Antônio. “Chegamos a 70 minutos por meio da repetição de alguns takes. Além disso, filmei cenas complementares na Praia de Itaipu, onde resta apenas um muro feito na época dos jesuítas”, detalha.
Luiz Carlos Lacerda também incluiu cenas do processo de recuperação do filme, assim como trechos de outros longas baseados em romances do escritor, entre eles Porto das caixas, de Paulo César Saraceni. “O Lúcio, como todo bom maldito, tinha que completar o centenário no ano do Jorge Amado e do Nelson Rodrigues. Depois da morte do Saraceni (em 14 de abril), era minha obrigação”, conclui.
Lançamentos do centenário
As homenagens ao centenário de Lúcio Cardoso não estão restritas ao resgate cinematográfico feito por Bigode. Responsável pelo lançamento de Lúcio Cardoso – Poesia completa (Edusp), no fim do ano passado, o escritor e doutor Ésio Ribeiro se dedica à publicação de uma compilação dos diários do autor. Também estão em planejamento exposições e livros que destacam outros aspectos da obra do escritor.
A jornalista e escritora Valéria Lamego, além escrever uma novela sobre a vida de Lúcio Cardoso, compila, em dois volumes, os contos publicados em jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo entre as décadas de 1930 e 1950. Além disso, a sobrinha-neta do autor, professora e pesquisadora Andréa Vilela, também organiza junto à Editora UFMG um livro sobre a obra plástica de Lúcio Cardoso.
“É uma coisa que nunca foi reunida desta forma. Estamos na fase de descrever as obras. Muitas já foram fotografadas”, adianta. Autora de tese sobre a relação do autor com sua criação, Andréa comemora o retorno da literatura de Cardoso às prateleiras. “Houve um despertar dessa obra de extrema importância”, elogia.
Andréa Vilela estará acompanhada dos filhos na primeira exibição pública de A mulher de longe, durante a Cineop. “Foi muito pouco tempo de filmagem, mas é alguma coisa. Começamos a perceber algumas escolhas de linguagem que ele fez no cinema. Os tipos de imagem, de poética, a densidade da coisa. Lúcio Cardoso é um grande literato e a obra dele tem um peso importante no nosso cenário cultural”, pontua.
Para a professora Ruth Silviano Brandão, que também dedicou seu doutorado aos romances de Lúcio Cardoso, quanto mais se falar no autor melhor. “É uma obra forte. Exige um leitor antenado, com perguntas quase metafísicas sobre a condição humana”, analisa.
Acervo
Desde 1972, o acervo de Lúcio Cardoso está arquivado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. São, ao todo, 2.490 documentos manuscritos e datilografados, entre correspondências, originais de livros, poesias, conferências. Também estão disponíveis para consulta do público recortes de jornais, folhetos, fotografias e desenhos.
Escritor no cinema
-Almas adversas (1948), direção de Leo Martem e roteiro de Lúcio Cardoso
-A mulher de longe (1949), direção, roteiro e história de Lúcio Cardoso
-Porto das caixas (1961), produção, roteiro e direção de Paulo César Saraceni. Baseado em história de Lúcio Cardoso.
-O enfeitiçado (1968), produção, roteiro e direção de Luiz Carlos Lacerda, inspirado na vida e na obra de Lúcio Cardoso.
-A casa assassinada (1971), roteiro e direção de Paulo César Saraceni, baseado em romance de Lúcio Cardoso.
-Mãos vazias (1971), roteiro, produção e direção de Luís Carlos Lacerda, baseado em romance de Lúcio Cardoso.
-O desconhecido (1978), direção e fotografia de Rui Santos, baseado em romance de
Lúcio Cardoso.