Blocos de BH querem deixar marca própria na folia

Ancorados em sucessos de outros autores, eles começam a se preocupar em desenvolver um repertório autoral, como forma de deixar um legado para a festa

Pedro Galvão 10/02/2020 06:00
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Maior a cada temporada, o carnaval de Belo Horizonte se reinventou nos últimos 10 anos, desfilando pelas ruas uma trilha sonora bastante eclética. Se houve um tempo em que os blocos eram sinônimo de antigas marchinhas, Alalaô e Mamãe eu quero ficaram no passado, dando lugar a um repertório variado e popular, mas criterioso em suas escolhas. E uma preocupação à parte dos músicos envolvidos, a execução de trabalhos autorais começa a transformar o perfil da folia. Em pequeno, médio ou maior grau, as composições locais vão ganhando espaço.
 
“É chegado um momento em que os protagonistas do carnaval precisam pensar de maneira compromissada qual é o legado que esses blocos vão deixar”, afirma Cristiano Di Souza, músico, compositor e regente do Então, Brilha!, além de fundador e participante de outros blocos, como o Pisa na Fulô, inteiramente dedicado ao forró. Ainda que privilegie hits baianos, o Então, Brilha! lançará neste carnaval a música própria Loucos para brilhar, fruto de parceria com o compositor baiano Fabiano Lie.

Em 2020, o bloco completa uma década. É um dos maiores da cidade e, nos últimos anos, atraiu mais de 100 mil pessoas em seus desfiles, sempre no sábado de carnaval, ao amanhecer, no Centro de BH. Boa parte das músicas, puxadas por trio elétrico e uma bateria com centenas de batuqueiros, o público conhece literalmente de outros carnavais. No caso do Brilha, o recorte escolhido passa pelos maiores sucessos da música baiana dos anos 1990.
“Trabalhamos com um repertório antigo, que inclui, por exemplo, O canto da cidade (Daniela Mercury), e Minha pequena Eva, músicas que, talvez, nem toquem mais em Salvador, que é de onde vêm. Temos um direcionamento que conversa com um público entre 25 e 45 anos, mas é importante lembrar que, em BH, há muitos blocos com um repertório diferente, com estilos mais contemporâneos, incluindo pagodão baiano, funk, etc.”, aponta Di Souza. “Enquanto o carnaval do Recife é muito ligado ao frevo, o do Rio ao samba e o de Salvador ao axé, BH tem essa diversidade rítmica como característica”, diz, lembrando ainda das músicas Frevo mulher (Zé Ramalho) e Bloco na rua (Sérgio Sampaio) como duas das mais populares na trilha sonora do carnaval belo-horizontino.

FÓRMULA Di Souza entende que “os ouvidos das pessoas estão mais antenados à música comercial”. Porém, a fórmula de sucesso que transformou o até outrora tímido carnaval local em um dos maiores do país na atualidade oferece preocupações do ponto de vista artístico. “Carnaval é uma porta de entrada para o mercado musical. Uma grande oportunidade para quem não tem espaço durante o ano com seus trabalhos independentes, solo ou com bandas, que não quer se submeter ao contexto predador e desumano de tocar em bar. O carnaval dá espaço para quem está à frente dos grupos de harmonia, guitarra, direções musicais, mas que, infelizmente, nem sempre tem essa empatia e visibilidade no mercado”, afirma.
 
O músico diz passar pessoalmente por isso. “Qualquer coisa que eu faça no trio elétrico todo mundo acha lindo, mas, no palco, como Di Souza, é uma dificuldade muito maior”, lamenta. Ele prevê para o segundo semestre o lançamento de seu segundo álbum autoral solo, ainda sem nome e em fase de gravação. “Será mais festivo que o anterior (Não devo nada pra ninguém, 2015)”, afirma o percussionista, ex-aluno e atual professor nas ONGs Corpo Cidadão e Querubins, na comunidade da Vila Acaba Mundo, Região Centro-Sul de BH.
 
DAS RUA PARA O ESTÚDIO A preocupação autoral é compartilhada por outros blocos, que tentam potencializar seus repertórios mesclando sucessos antigos com novidades. É o caso do Juventude Bronzeada, fundado em 2014. Adepto de velhos hits da música baiana, ele expande a atividade com a banda, que toca ao longo do ano em eventos. Em 2017, lançou o álbum Tropical lacrador, cujas faixas também integram o repertório do desfile, geralmente na terça de carnaval.
 
“Ano passado, homenageamos Daniela Mercury. Neste ano, Gilberto Gil. Teremos muitas músicas dele no desfile, além de vários clássicos do axé anos 1990, e outras mais atuais que se inserem nesse contexto, além das nossas”, diz Rodrigo Magalhães, regente da bateria e baixista. Ele cita também Talismã, parceria com a banda local Graveola e o Lixo Polifônico, como parte do repertório. “O grande desafio do nosso carnaval é fazer com que a música autoral tenha mais destaque”, avalia.
 
“Temos os hinos dos blocos, mas ainda precisamos levá-los para o grande público. Engatinhamos nesse sentido. Por enquanto, alcançamos pessoas próximas, participantes da bateria, amigos, um universo muito li- mitado. Nosso disco não tem nada que bombou fora desse recorte, talvez porque não conseguimos dialogar com o público da música de massa. Temos uma proposta estética que não está tão em voga e há uma questão financeira também. Fazer um hit bombar demanda dinheiro para divulgação. Nós não temos essa estrutura”, argumenta Magalhães.

CRITÉRIOS Ele ressalta que a escolha do repertório passa também por critérios políticos. “Não abrimos mão. Ano passado, queríamos falar de homofobia. Tinha ocorrido o caso do Márcio Victor, do grupo Psirico, vítima de ataques homofóbicos depois do vazamento de foto beijando um cara. Fizemos questão de incluir músicas dele no desfile.”
 
No caso do bloco Haja Amor, criado em 2013, a música autoral é a base. “Começamos com versões bregas, mas logo outros blocos surgiram com a mesma proposta. Então, decidimos mudar. Desde 2018, optamos pela música independente, e isso engloba o que é feito em BH, com Maurício Tizumba, Sérgio Pererê, Rosa Neon e Lamparina e a Primavera, mas também o cenário nacional, com Liniker e Duda Beat, por exemplo”, conta Octávio Cardozzo, músico e um dos criadores do bloco.
 
Além disso, participam artistas locais, como Maíra Baldaia, Cotô Delamarque, André Souza (banda Cayena) e Débora Coimbra (banda Faca Amolada). No ano passado, o artista lançou a música Debaixo d’água. A composição nasceu nos ensaios, mas tomou outro caminho fora do carnaval e soma mais de 10 mil execuções em plataformas digitais.
 
“Nosso bloco continua mantendo a essência do início da retomada do carnaval de BH. Quem vai, realmente gosta da nossa música. É um público muito focado no nosso repertório. Percebemos como a música independente é forte nos últimos anos. Vemos pessoas interessadas em ouvir e conhecer, tanto que criamos uma playlist no Spotify com as músicas do desfile de cada ano”, afirma Cardozzo. O Haja Amor desfila na quinta-feira anterior ao feriado de carnaval, no Bairro Concórdia. 

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