Se o carnaval no Rio é famoso pelo samba, o da Bahia, pelo axé, e o de Recife, pelo frevo, o de Belo Horizonte se transforma cada vez mais em uma festa de todos os ritmos. À medida que a folia na capital mineira cresceu, também se diversificou, e atualmente é possível “carnavalizar” em qualquer estilo. Rock, pop, jazz, carimbó, funk, MPB, tropicália, sertanejo, brega, rap e até trilha sonora de filmes, desenhos e videogames, além de música eletrônica – tem som para todo gosto. Na maioria das vezes, é verdade, mesclados com o batuque, mas mantendo as características originais, o que mostra mais uma face do caráter inclusivo da festa.
A fusão de sons faz sucesso. Tanto que entre os maiores blocos estão o Funk You, que colocou o baile todo para descer até o chão na segunda-feira nas proximidades do Colégio Arnaldo. Em que ritmo, nem precisa dizer. E jazz combina com carnaval brasileiro? A multidão arrastada pelo Bloco Magnólia ontem, na Avenida Américo Vespúcio, no Caiçara, está na rua para provar que sim. Tem sertanejo? Tem, sim, senhor, poderiam responder em coro os fãs do É o Amô, que lotou a Avenida Abrahão Caram, na Região da Pampulha, em um domingo embalado pelos inconfundíveis sucessos de duplas e companhia.
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O estilo é bem diferente, mas a animação não é menor quando o que toca são canções como Evidências, de Chitãozinho e Chororó, ou Temporal de amor, de Leandro e Leonardo. Para provar que as letras podem falar de dores de amores, mas estão longe de provocar sofrência no carnaval, cerca de 200 mil pessoas foram ao entorno do Mineirão no domingo entoar esses e outros sucessos sertanejos. Entre elas, de chapéu e bota, a estudante Ana Laura Silva Brito, de 18 anos, não escondia a paixão pelo gênero. “Sempre gostei, desde pequena. É uma música que mexe com os sentimentos da gente”, definiu.
ROQUEIROS A mistura de ritmos permite que até quem não é chegado em samba, pagode, axé e afins aproveite o carnaval ao máximo. Foi o que aconteceu com Matheus Godói, de Araraquara (SP), que no sábado acompanhou o Bloco Jam Dira, na Savassi. “Esta é minha primeira vez no carnaval de Belo Horizonte e rodei bastante até achar um bloco que realmente curti. Aqui eu me encontrei, pois rock é o som que eu curto. É um jeito diferente de aproveitar a festa, e estou adorando”, afirmou ele, enquanto seguia os músicos executando clássicos, como Born to be wild, do Stepenwolf, acompanhados de potente bateria.
Na segunda-feira, o Putz Grila também já havia feito sucesso entre foliões roqueiros ou fãs de pop e rock. Iniciativa da banda de mesmo nome, especializada em repertório dos anos 1980, também executou sucessos misturando guitarras e percussão poderosa. “É rock, mas em ritmo de carnaval. Podemos aproveitar os dois para nos divertir”, define o engenheiro mecânico Marco Rocha, de 45, que cresceu ouvindo sucessos de grupos como Titãs, Biquini Cavadão, Blitz, Capital Inicial, todos executados pela banda. “O corpo até reconhece as músicas e começa se mexer sozinho.”
Ele levou a família, mostrando que não há idade para curtir o carnaval. E o bloco realmente promoveu encontro de gerações, com a presença de crianças e gente mais madura, como entregavam os cabelos brancos – ou a ausência de cabelos – de muitos participantes.
Outro bloco que investe no rock é o do Índio. No sábado, o cortejo saiu na Rua da Bahia, no Centro, tocando de Strokes a Barão Vermelho, passando por outros sucessos nacionais e internacionais. “É mais uma opção para quem quer curtir o carnaval e gosta de rock”, diz a professora Ilma Lemos, que foi com Humberto Lopes, motorista, se divertir.
No outro extremo, mas não menos empolgados, estão os fãs de música brega que lotaram o Beiço do Wando na manhã de domingo, na Avenida Brasil. Além do músico que lhe dá nome, o bloco executou músicas de outros ícones do gênero, como Reginaldo Rossi, e teve como ponto alto a participação da cantora Gretchen, que sacudiu o público com músicas como Freak le boom boom.
“Música brega e carnaval andam de mãos dadas, pois são garantia de diversão”, argumentou o produtor de eventos Felipe Farage, usando fantasia em que parece montado em um dinossauro. “Carnaval é diversidade e o Beiço do Wando celebra isso. E a Gretchen é uma guerreira”, declarou Ícaro Gibran, que veio de Recife curtir a folia em BH a caráter e ao lado da mineira Rizilayne Aniceto.
Ainda no domingo, o Bloco da Fofoca animou foliões na Avenida Afonso Pena, no Centro, com muito carimbó. Porém, como as próprias criadoras – as cantoras do grupo Aruanda – destacam, o grupo dá uma pitada de mineiridade ao ritmo paraense. “É bom ter tantos ritmos, porque carnaval é isso, diversidade”, declarou o autônomo Eduardo Lofiego.
RITMO DE PROTESTO E a mistura é tão eclética que há espaço também para engajamento. O Hip Hop Folia, embaixo do Viaduto de Santa Tereza, na tarde de domingo, foi organizado pelo coletivo Matriarca Mob, que tem a proposta de fortalecer a presença das mulheres e do público LGBT+ na cena do rap, e se fez ouvir pelas letras contundentes. “As mulheres são sempre diminuídas, há muito machismo e queremos mudar isso”, diz Ynaê MC, umas das participantes.
Em outro universo da mesma festa, o Unidos do Estrela da Morte reunia fãs de ficção científica e autoproclamados nerds em duas apresentações, uma no sábado e outra na segunda-feira. O bloco contou com muitas crianças, inclusive na execução das músicas, e muitos integrantes fantasiados. “Nosso objetivo é reunir o pessoal, promover a inclusão. Todos são bem-vindos”, diz o professor de história Israel Brasiel, que, fantasiado de Chewbacca, personagem do filme Guerra nas Estrelas, fez sucesso, sendo constantemente requisitado para fotos.
É nesse mundo que se insere o analista de sistemas Rodrigo Romano, de Contagem. “Não gosto de carnaval, de samba, mas do bloco, sim. Então, venho para ver o pessoal”, diz ele. “Somos nerds mesmo”, assume a doutoranda em engenharia de materiais Ellen Alves, que o acompanhava.
MISTURA NO DNA A diversidade de ritmos no carnaval de Belo Horizonte pode ser explicada pela própria retomada da festa, há 10 anos. Entre os blocos pioneiros estão dois que sempre prezaram pela mistura de sons, o Aproach e o do Peixoto.
O primeiro tem em seu DNA a banda Proa, conhecida no circuito undergound brasileiro pela mistura de surf music, punk rock, música de fanfarra e do Leste Europeu. A primeira vez que os integrantes colocaram o bloco na rua foi em 2009, quando desfilaram em volta do Mercado Central, em um esquema improvisado e que não chamou tanta atenção.
Mas em pouco tempo, já se apresentando no Bar Brasil 41, no Bairro Santa Efigênia, passou a atrair muita gente. Isso motivou a Prefeitura de Belo Horizonte a montar palco em frente ao local, ainda um dos de maior concentração em pontos fixos da folia belo-horizontina.
A estrutura melhorou, mas provocou o distanciamento do público, considerado um pecado pelos criadores do bloco. Em 2018, eles decidiram não mais se apresentar no palco e este ano foram duas apresentações novamente “no chão” – uma no domingo anterior ao carnaval, no bom e velho Brasil 41, e outra na segunda-feira, no Restaurante do Ano, na Savassi.
Já o Bloco do Peixoto, que saiu ontem em Santa Efigênia, tem como um dos fundadores o historiador e músico Guto Borges. Guitarrista da banda Dead Lover’s Twisted Heart, ele levou a rebeldia do rock para o carnaval, sempre buscando inovar, o que foi muito importante para o renascimento da festa em BH.