Minha vida é esta: subir Bahia, descer Floresta... Conhecesse o carnaval de Belo Horizonte nos dias atuais, o compositor Rômulo Paes, autor do célebre verso, poderia acrescentar um interminável roteiro ao samba: virar à esquerda na Afonso Pena, à direita na Amazonas – parada para a água, fôlego –, mais uma caminhada até o próximo bloco na Rua Sapucaí ou lá em Santa Tereza... E nessa peregrinação lá se vão quilômetros pelas ruas da cidade, percorridos a pé em verdadeiras procissões de foliões a cada dia mais exaustos, nem por isso menos animados.
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Como nem ônibus, nem táxis, nem veículos de aplicativos conseguem fugir do grande engarrafamento em que se transformou a cidade desde o primeiro dia de carnaval – e tirar o próprio carro da garagem é uma aventura de desfecho incerto –, não resta opção aos foliões que não colocar o pé na estrada. E ontem, data do superdesfile do Baianas Ozadas, foi mais do que nunca dia de marchas intensas entre um bloco e outro. O resultado pode se ver a cada esquina: hordas trôpegas de bailarinas barbadas, feiticeiras cambaleantes de chapéu meio torto, havaianas esgotadas e super-heróis quase derrotados pelo arqui-inimigo cansaço se locomovendo em bandos até o próximo desfile, onde toda exaustão será perdoada.
Foi assim que muitos foliões partiram do Unidos do Barro Preto, no bairro de mesmo nome, para o Corte Devassa, na Rua Sapucaí, na Floresta, ou do Baianas Ozadas, na Afonso Pena, até o cortejo do Funk You, na Avenida Brasil. Nesse ritmo, tem gente que estima ter percorrido 15 quilômetros durante a folia. Foi o que calculou o estudante de arquitetura Kevin Rodrigues, de 21 anos. Para ele, o carnaval é oportunidade para as pessoas conhecerem a cidade e vivenciarem o espaço público de maneira diferente.
Nesta época, ele lembra, muitos fazem a pé itinerários que costumam percorrer de ônibus ou de carro. “No carnaval a gente anda pela cidade e vivencia a real situação das ruas. A ocupação dos espaços públicos é uma necessidade”, afirma Kevin, que esteve de manhã no Unidos do Barro Preto. Blocos que acompanhou, ele perdeu a conta, mas não tem dúvida de que estar nas ruas é também um ato político. “Andar pela cidade é uma forma de experimentar o espaço urbano e saber o que cobrar dos prefeitos e vereadores para que tenhamos uma cidade boa de se viver e segura para se andar”, completa.
Os amigos Eduardo Castanheiro, de 53, Ivan Rodrigues, de 40, e os espanhóis Manoel Romano, de 42, e Jorge Blas, de 54, estão entre os que já entenderam que, para curtir o carnaval da capital mineira, caminhar é preciso. “A gente curte andar pela cidade, Savassi, Centro, os blocos de bairro. Andar acaba sendo algo muito bom, nos permite ver o movimento”, avalia Eduardo. Ontem, a peregrinação começou pela Corte Devassa, sem lugar para acabar.
SURDÃO
O veterinário Milton Cabral, de 44, leva como troféus os adesivos dos blocos em que tocou, com o surdo que arrasta de um lado para outro. Parte do trajeto ele tem de fazer a pé. Ontem, se apresentou na bateria do Unidos do Barro Preto, na Rua Juiz de Fora, e já se preparava para acompanhar a Corte Devassa, na Rua Sapucaí, na Floresta. Desânimo? Não lhe toca. “Monto um esquema confortável para poder circular”, afirmou.
Ontem, o publicitário Ed Silva, de 26, começou a peregrinação pelo Alô Abacaxi, passou pelo Unidos do Barro Preto e já planejava seguir para um terceiro. “Uso ônibus somente para chegar ao Centro. O restante dos deslocamentos faço a pé. Não tem mobilidade urbana para chegar aos blocos, então é bem massa fazer o trajeto caminhando. No caminho sempre rola fazer amizades e paqueras”, afirma.
E se a peregrinação é uma oportunidade para quem mora, melhor para quem vem conhecer a cidade. Que o diga a professora Kathleen Tanner, de 56, que veio da Austrália. “O carnaval em Belo Horizonte é espetacular pelas vibrações. A dança e a música são incríveis”, afirmou. Ela contou que vive em uma pequena cidade próxima de Sidney, e se surpreendeu em estar no meio da multidão que ocupa as ruas da capital mineira. “Andei muito e por vários lugares. A primeira coisa que observei foi a cobertura de pedras nas calçadas, que é fantástica para fotografar. A segunda coisa que amei foram as ruas com árvores verdes fabulosas”, afirmou.
A mobilidade pelas ruas da capital também é vivenciada por muitos foliões em cadeiras de roda. Por isso, abram alas para a advogada Ana Paula Duarte, de 27, que estava acompanhada da amiga Maria Cecília Coelho, da mesma idade. Alguns dias da folia ela curtiu em Salvador. Chegou na segunda a BH e está aprovando a experiência. “A galera está ajudando bastante. Abrem espaço”, conta Ana Paula.
E os cortejos de carnavalescos que se deslocam pelas ruas interferem até na agenda dos foliões. Além de planejar a fantasia e escolher os blocos, é preciso se programar sobre como chegar – e isso é um desafio digno de maratonista – e como se deslocar de uma aglomeração para outra. Por isso, a possibilidade de chegar a pé guiou muita gente na escolha de onde pular. É o que faz a jornalista Élida Murta, que seleciona os desfiles aos quais consegue chegar sem depender de ônibus ou de carro. “Moro na Avenida Bernardo Monteiro, em uma região que tem muitos blocos. Estou indo a pé a todos”, conta. A costureira Tânia Regina Belotti, de 40, acredita que anda em média 15 quilômetros todos os dias. De onde mora até a região central ela costuma ir de metrô, mas no perímetro da folia não tem outro jeito: no carnaval de BH, caminhar, além de preciso, é inevitável.