A resistência das escolas de samba, que surgiram a partir de 1937 em vários bairros da capital, e dos blocos caricatos, marginalizados, sobretudo, nas últimas três décadas, foram embriões para o nascimento de blocos de rua no fim da década passada. Eles surgiram como resposta política e com a proposta de ocupação consciente do espaço público, levando o carnaval para regiões periféricas e marginalizadas.
“Nós, dos blocos de rua desta geração, temos uma dívida histórica com as escolas de samba e blocos caricatos. Se, de alguma forma, esse processo (de retomada do carnaval) teve espaço de se constituir em 2009, 2010 e 2011, foi porque forças comunitárias resistiram a essa política de degradação e destruição fortemente impetrado pelo poder público. Em suas vilas e comunidades, eles resistiram”, afirma o antropólogo e ativista Rafael Barros.
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“As manifestações populares, como o entrudo, foram reprimidas, dando espaço às grandes sociedades já no segundo ano de construção da nova capital. Note-se que, depois do primeiro carnaval, em 1898, os comerciantes e demais membros da elite se reuniram para fundar uma grande sociedade que saiu no ano seguinte: o Diabos da Luneta. Possivelmente, essa iniciativa estava ligada ao plano de civilização do carnaval nos moldes europeus, seguindo um movimento nacional”, comenta Marcos, que, nos últimos anos, se debruçou sobre o acervo de Abílio Barreto e lançará em breve os escritos sobre o carnaval deixados pelo historiador, que retratam os festejos na cidade de seus primórdios até a década de 1940.
Para Rafael Barros, o perfil combativo dos novos blocos, associado ao processo e contexto político na qual ele surge, deu ao carnaval belo-horizontino uma característica singular, uma vez que outras bandeiras, postas na cidade, foram abraçadas pelos foliões. Dessa forma, a pauta, que se iniciou como uma política territorial, foi abrangendo outras questões: a luta racial, o feminismo e o espaço da mulher e as causas de gênero.
“O fato de eu ser uma mulher, negra e transexual, e estar à frente de alguma coisa é um avanço. A minha comunidade não está à frente de nada, está sempre à margem”, comenta Cristal Lopez, madrinha de cinco blocos e que se tornou um dos símbolos da luta pela visibilidade trans em Belo Horizonte. “A gente tinha medo de se envolver no carnaval, de retaliação e agressão. (O fato de) eu estar ali, na frente, é um avanço imenso. Ajuda outras pessoas da minha comunidade, motiva outras pessoas a fazer o mesmo”, comenta.
As mulheres, aliás, fizeram do carnaval um meio para dar visibilidade e projeção às suas diversas causas. Este ano, por exemplo, mulheres dos mais variados blocos lançaram a campanha “Tira a mão: é hora de dar um basta” para combater o assédio sexual. “O objetivo é alertar contra a agressão, o tipo de abordagem. As mulheres não estão só assistindo à festa. Tem mulher tocando todo tipo de instrumento, regendo, cantando, dançando. As mulheres estão fazendo o carnaval”, afirma Débora Mendes, uma das criadoras do bloco de axé Havayanas Usadas, que estreia este ano como dissidência do Baianas Ozadas.
Ao longo da história, grupos de mulheres se reuniram a formaram agremiações, caso do bloco Camponesas Búlgaras. No entanto, o historiador Marcos Maia afirma que não tinham como objetivo nenhum questionamento político aparente. Em 1946, foi criada a Escola de Samba Unidos de Monte Castelo por uma mulher sambista e negra chamada Lourdes Maria, que atuou no mundo do samba até a década de 1990. Hoje, diversos blocos se apresentam com bateria composta apenas por mulheres: Bruta Flor, Clandestinas, Sagrada Profana e Baque de Mina.
“TOCA QUEM FOR” Para o músico Di Souza, regente do bloco Então, Brilha!, esse caráter plural da festa se tornou elemento marcante da música de carnaval de Belo Horizonte, que passou a ser produzida pelos novos blocos. “A característica principal é ser abrangente. Em Salvador, por exemplo, ensaia-se o ano inteiro, tem toda uma concepção que os blocos daqui não têm. A proposta que se formatou em Belo Horizonte é do ‘toca quem quer’. O nível de conhecimento não é critério para nenhum bloco”, afirma Di Souza, que comanda o cortejo de um dos mais tradicionais blocos da cidade, com desfile previsto para amanhã de manhã. Apesar da informalidade e da abertura da grande maioria dos blocos, é notório o esforço de profissionalização musical, com frequentes oficinas, mais ensaios, composições próprias e que chegaram a gravar CDs e serem convidados para shows.
Em menos de uma década, o carnaval se multiplicou – de tamanho e causas. Com o crescimento, vêm à tona novas discussões e, naturalmente, novos desafios. Manter a originalidade e o caráter público, resistir à mercantilização e à espetacularização da festa são questões que serão testadas nestes dias de folia e devem ser observadas e debatidas. “Carnaval não é evento, é cultura e precisa de política cultural para que a gente possa potencializar e retomar essa experiência comunitária, que é o germe da festa”, conclui Barros.