Além do ineditismo em livro de alguns textos – e de outros serem pouquíssimo conhecidos –, a missão desse trabalho é a de mostrar como o talento de Euclides não se limitava aos Sertões, certamente uma das mais importantes obras da literatura brasileira. “Julgo tão importante como outro livro de Euclides, À margem da história (1909), publicado postumamente. A editora Unesp deverá lançar uma edição crítica na qual será possível constatar sua radicalidade no âmbito da literatura e da cultura brasileiras”, diz Hardman.
Entre as 31 composições, há desde fragmentos (punhado de frases sobre determinado assunto ao qual Euclides não pode ou não quis retomar) até anotações e manuscritos que resultariam em textos acabados como Contrastes e confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907) e o já lembrado À margem da história. Uma das questões mais recorrentes na obra de Euclides é a relação entre civilização e barbárie – assim, quando de sua viagem ao Alto Purus, no Acre, região fronteiriça com o Peru, em 1905, época de auge da economia extrativista da borracha, o escritor observou o trabalho semiescravo a que eram submetidos os seringueiros, além da brutalidade reservada aos índios.
À época, Euclides foi designado para liderar a comitiva mista brasileiro-peruana de reconhecimento da região. E, além de cumprir com os objetivos técnicos da missão (como mapeamento da área), ele coletou dados para uma análise histórica e social do extremo Oeste da Amazônia.
Que detalhes sobre o trabalho de Euclides da Cunha são apresentados nessa seleção que não é possível ver (ao menos não tão nitidamente) em Os sertões?
Haveria vários aspectos a considerar. Mas, de forma sintética, penso na dimensão do interesse internacionalista amplo que o autor revela, em vários dos textos desse volume, não só no âmbito das questões da América Latina, mas de toda a geopolítica mundial, muito além do apregoado “nacionalismo rígido” que muitas leituras apressadas lhe conferem. Sua resenha original, por exemplo, sobre o romance Quatrevingt-treize (1874), de Victor Hugo, manuscrita num caderno de cálculo infinitesimal na Escola Militar, por volta de 1885, converte-se em libelo, em profissão de fé romântica nos ideais da Revolução Francesa, que já nos tinha chamado a atenção quando compilávamos sua poesia de juventude. Seu interesse pelas regiões interiores e sua articulação com os polos hegemônicos da política, da economia ou da cultura faz dele um dos primeiros intelectuais brasileiros a questionar as estruturas autoritárias mais arcaicas herdadas da colônia e do império e, sobretudo, a exclusão de muitos de seus espaços e comunidades humanas da “história oficial”. Quanto ao estilo, vale lembrar que aqui nós temos textos curtos, numa forma talvez a mais recorrente em Euclides (Os sertões constituindo, a rigor, uma exceção). Seu vínculo forte com o jornalismo, seja como cronista ou articulista de fundo, é algo que necessitaria ser ainda mais bem estudado.
Pelos textos, nota-se Euclides em constante ato de autocrítica sobre assuntos diversos. É possível dizer, então, que esses escritos, de alguma forma, até ajudam a ressaltar aspectos biográficos?
Bem, para Euclides certamente valeria a máxima borgiana: no fundo, publicamos livros para parar de revê-los...
Interessante também é a forma crítica como Euclides via as tentativas de uma restauração da monarquia e também apontava as rachaduras da república, não?
Euclides foi um abolicionista e republicano de primeiríssima hora, engajado como jovem cadete radical, inclusive com simpatias declaradas pelo socialismo reformista mais afim aos inícios da social-democracia europeia, o que, digamos, se no Brasil de hoje representa uma posição avançadíssima, imagina, então, no final do século 19. Mas, como já apontaram com argúcia, entre outros, nossos saudosos amigos euclidianistas Frederic Amory e Roberto Ventura, ao contrário do que leituras banais sugeriram, Euclides, já em 1894, descontente com os rumos autoritário-militares da república, entra em rota de colisão com a carreira militar, é transferido abruptamente para Campanha, em Minas Gerais, e, em 1895, inicia seus trabalhos como engenheiro de obras públicas no Estado de São Paulo, desengajado do Exército, como tenente da reserva. E como dissidente discreto, mas efetivo, podemos acrescentar.
Euclides será o escritor homenageado da Flip deste ano. Um dos motivos é o fato de Os sertões ser considerado um dos primeiros clássicos brasileiros de não ficção. Observando nossa atualidade, qual importância tem essa homenagem? E quão Os sertões é atual nesse tempo?
Euclides é um dos maiores escritores da língua portuguesa de todos os tempos.
Euclides da Cunha – Ensaios e inéditos
. Organização: Leopoldo M.
Bernucci e Felipe Pereira Rissato
. Editora Unesp
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. R$ 60
"Euclides tem muito a dizer sobre o Brasil de hoje"
Uma das maiores especialistas em Euclides da Cunha no Brasil, com 12 livros publicados sobre o escritor e sobre Canudos, a crítica literária e professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão participará da próxima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (10/7 a 14/7), cujo homenageado é o autor de Os sertões.
Uma nova edição de No calor da hora - A Guerra de Canudos nos jornais – a primeira em cerca de duas décadas – também está sendo preparada pela editora Cepe/Selo Suplemento Pernambuco. O livro lançado em 1973 (a tese de livre-docência de Walnice) é o motivo pelo qual a pesquisadora até hoje não confia nos jornais. “Você me desculpe”, diz ela, por telefone, “mas a mídia era cúmplice e fazia lavagem cerebral dos brasileiros”.
Euclides, explica Walnice, era prata da casa do jornal Estado de São Paulo. Desde que fez um ato de protesto contra a monarquia e foi expulso da Escola Militar, no Rio, em 1888, se mudou e o jornal (então A Província de São Paulo) o acolheu. Ele escreveu “violenta propaganda republicana”, segundo a professora, e depois da proclamação voltou para o Rio, de onde seguiu colaborando com a publicação.
Em 1897, vai para Canudos (Os sertões sai em 1902) a pedido do jornal. Ele fica menos de um mês no local, no fim da guerra. “É um fenômeno curiosíssimo o que acontece ali, porque ele era tenente do Exército, engenheiro militar, depois civil. Mas ele era imbuído do que aprendeu na Escola Militar, na época uma escola de vanguarda, seguindo o modelo da Revolução Francesa. Os militares da época viraram revolucionários.
Embora não tenha se envolvido diretamente no movimento de derrubada da monarquia, Cunha foi beneficiado. “Imediatamente após o golpe que proclamou a república, ele é readmitido na Escola Militar.”
“Euclides tem muito a dizer sobre o que está acontecendo no Brasil hoje”, afirma Walnice. “Ele tinha uma preocupação com a justiça social e escreveu um livro que é um monumento de denúncia da maneira com que o Brasil trata os pobres, a ferro e fogo, num momento em que os pobres também estão sendo tratados a ferro e fogo. O processo adquiriu outros disfarces, mas isso não mudou.”
A escolha de Euclides tem a ver com a vontade de Fernanda Diamant, a nova curadora da Flip, de investir mais em não ficção na programação do evento em 2019. “Os sertões é o primeiro clássico de não ficção brasileira, uma obra exemplar. Uma não ficção que é uma grande literatura”, disse a curadora.
O livro está disponível em algumas edições. Uma coedição da Edições Sesc e da Ubu, organizada e comentada por Walnice Nogueira Galvão, resultou em dois produtos diferentes (a Ubu lançou como caixa, em 2016; a Sesc publicou um ano antes, num volume único). Leopoldo Bernucci editou um volume de 928 páginas para a Ateliê Editorial, em 2018. A Martin Claret também tem uma versão na praça – a chancela da Flip costuma estimular o mercado a soltar novas edições. (Agência Estado).