
“Forjo aqui um discurso, uma outra obra literária ou apenas calúnias e detrações?” A pergunta aparece no início de Nobel, o novo livro de Jacques Fux. E a resposta está com o leitor que se enveredar em mais uma narrativa fluente e saborosa do mineiro. O autor de Antiterapias (vencedor do Prêmio São Paulo de 2013), Brochadas (2015) e Meshugá (2016) volta com um romance inusitado, na verdade a reprodução do discurso que Jacques Fux, personagem criado pelo escritor Jacques Fux, fez ao receber o Prêmio Nobel de Literatura por ter “performado, falsificado e duplicado a narrativa dos escritores canônicos, transformando-a em sua perturbada obra”, como descreve.
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De Meshugá a Nobel. Como foi o caminho?
Os meus quatro livros de ficção – Antiterapias, Brochadas, Meshugá e Nobel – fazem parte de um projeto literário em que brinco e discuto a questão da ficção/autoficção, da intertextualidade, da apropriação e da releitura dos grandes clássicos da literatura. Em Antiterapias, o protagonista sonha em receber o Prêmio Nobel. E esse mesmo personagem enfrenta – digamos assim – alguns problemas sexuais (Brochadas) e psiquiátricos (Meshugá) até ser finalmente capaz de pronunciar seu belo e pomposo discurso para a Academia Sueca de Letras.
O que o levou a Nobel e ao formato de um discurso de agradecimento?
Ao longo dos anos, fui lendo e me divertindo com os discursos dos laureados. São textos lindíssimos e delicados. Porém, um “discurso” me marcou especialmente: “Um relatório para a Academia”, de Kafka. Kafka é um dos cânones da literatura e seu humor, sarcasmo e ironia – pouco comentado e genialmente apresentado em seu “relatório” – foi o impulso literário para o livro.
Como estabeleceu o diálogo com os escritores laureados com o Nobel? Como foi o trabalho de pesquisa e de “costura” da vida e obra dos autores? Deixou algum autor de fora do seu livro?
Eu li todos os discursos de todos os laureados. Alguns me marcaram mais que outros. Durante algum tempo só li livros e biografias dos premiados. E como a ideia central é a de expor o lado não muito conhecido, elegi os escritores que mais poderiam se encaixar nesse projeto, digamos, “infame”. É comum que em um discurso haja uma certa censura pessoal. Mas o protagonista do Nobel resolve não ter amarra alguma. Ele fala tudo que sente, que pensa, que sonha, sem se incomodar em nada com a opinião do outro. Questiono-me: seria ele louco ou grande gênio?.
“A verdade, imundos senhores, é que nos valemos da nossa própria sujeira e imundície para sermos premiados, lidos e reconhecidos. Só talento não basta.” É uma constatação ou pura ficção?
Tudo é ficção! Mas, como o próprio narrador do livro fala: “A ficção não é o contrário da verdade. É um complemento, um acabamento, um acesso manco ao real e à memória”.
Ao citar o sul-africano Coetzee, você o qualifica de “um mestre inventor. Inventor de si mesmo como personagem, narrador e alter ego, inventor de sua fortuna crítica, inventor de sua depreciação e de sua inferiorização”. E diz que o “homem” Coetzee, como ardiloso escritor que é, nunca se expõe. “Ele se esconde, se protege, se encurrala atrás da ficção.” Todos os escritores fazem o mesmo?
Acho que muitos escritores se expõem. Outros se refugiam na ficção. A minha literatura trabalha justamente com esse limite, com essa borda, com esse vislumbre em habitar a terceira e poderosa margem.
“Permitam-me a fala, senhores. Permitam-me falar em nome das mulheres. Permitam-me o lugar da fala, pois, sem ele, toda a ficção se esvai.” Qual o lugar de sua fala na literatura? Você também fala pelas mulheres?
Eu, como autor, não falo por ninguém. Nem por mim! Mas meus personagens falam, gritam, esbravejam em busca do poder da palavra. Em honra e em louvor do direito à literatura. Meus livros se tornam uma defesa absoluta da, e pela, expressão artística – tão censurada hoje em dia. Caros leitores, será que estou fazendo um outro discurso? Meu personagem muitas vezes toma conta de mim – e vice-versa – e se empolga em demasia.
José Saramago é qualificado pelo autor do discurso como “lânguido e débil”. E também de fazer parte da “corte dos inglórios, dos bastardos e dos revisionistas históricos” por ter alterado a dedicatória de seus livros, removendo citações à ex-mulher Isabel. “Nem Huxley, Asimov ou Orwell teriam refundado o passado dessa maneira.” O que o fez incluir Saramago em Nobel? O autor do discurso estaria pronto para brigar com Saramago, como fizeram García Márquez e Vargas Llosa?
O livro apresenta algumas batalhas entre escritores para se impor. Rosa diminuiu Machado de Assis, obviamente não por ele ser ruim, mas para se impor como um grande escritor. Agnon (Nobel em 1966) minimizou a importância de Kafka (que surgia na época); Elias Canetti (Nobel em 1981) desprezou a poesia T.S. Eliot (Nobel em 1948), ele queria ser imortal como o grande poeta inglês. A peleja com Saramago é uma forma de o narrador se colocar no panteão dos escritores. Mas, sim, o Saramago reescreveu sua própria história ao apagar a primeira esposa, Isabel, de suas dedicatórias.
Nas últimas páginas, você volta a falar da loucura que habita o escritor e seus personagens. A loucura o fascina ou assombra?
Fascina e assombra. Ao escrever Meshugá: um romance sobre a loucura, achei que seria divertido tratar do tema da loucura. Ao entrar na cabeça dos meus “personagens”, vi o quanto é sofrido e doloroso sentir/vivenciar a loucura. Mas é um incrível mote literário.
A inveja, a cobiça, o ressentimento são combustíveis ou obstáculos para o escritor?
Combustível e obstáculo. Os “nãos” e os “silêncios” que recebemos machucam como facadas e tiros. E se você tombar, se você desanimar, você não será definitivamente escritor. Ser escritor é duvidar de si mesmo o tempo inteiro – mas seguir em frente. É viver a angústia diária – criativa e existencial –, o pânico com a página em branco, o rancor de não ser capaz de acessar e nem alcançar as verdadeiras palavras e os mais ternos sentimentos. E tudo isso ressaltado pela dor e pela frustração diante das diárias rejeições – do outro, dos pares, e de você próprio.
Qual o mais louco dos discursos de recebimento do Nobel?
Gosto muito da crítica feroz perpetrada pelo laureado em 2005, Harold Pinter. O discurso se chama “Arte, verdade e política” e o escritor não poupa críticas ao governo e à política internacional americana.
Por que a fusão entre vida e literatura ainda espanta?
Acho que muitos idolatram a figura do escritor, quando na verdade o certo é apreciar e se encantar pela obra. E a vida de todos nós – famosos, escritores ou apenas seres humanos – é repleta de infâmias, segredos, mistérios e belezas.
TRECHO “A partir de hoje, perjuro, a literatura não mais me interessa, apenas a glória, os odores e os cânticos das ninfetas em minha cama. Se eu continuar interessado em literatura, em produzir algo forte, fantástico e vigoroso novamente, a dor e a angústia das letras me aniquilarão. Tenho certeza de que o sofrimento de colocar cada letrinha, cada pequena vírgula, cada reflexão e construção será multiplicado por mil. E o olhar perverso dos mesquinhos, dos amigos, dos opositores ficará ainda mais atento a qualquer deslize, digressão ou desacerto meu. Não quero viver assim. Sei que receber o Nobel é uma tentativa malsucedida de domesticação da obra e do autor. Um desejo de enquadrar, classificar, entender e propagar ideias que se encaixam aos pensamentos do status quo dos senhores, energúmenos acadêmicos. Mas vejo o prêmio que me concedem como a minha libertação desse obsessivo egoico mundo literário.”
NOBEL
. De Jacques Fux
. José Olympio
. 128 páginas
. R$ 35,90
LANÇAMENTO
Terça-feira (10), às 19h30, no projeto Sempre um Papo, no auditório da Cemig (Rua Alvarenga Peixoto, 1.200, Santo Agostinho, Belo Horizonte). Entrada franca.
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